A Desregulamentação dos Mercados Financeiros e a Crise Global: Lições e Perspectivas

AutorBruno Mattos e Silva
CargoConsultor legislativo do Senado Federal. Advogado. Mestre em Direito (Universidade Católica de Brasília)
Páginas6-18

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1. Os antecedentes da crise A desregulamentação dos mercados financeiros

Na década de 80, com Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher no Reino Unido, começou um processo de desregulamentação dos mercados financeiros, como parte da doutrina liberal da qual o Partido Republicano dos EUA e o Partido Conservador britânico são entusiasmados defensores.

Em verdade, a discussão a respeito da desregulamentação, flexi-bilização ou redução de regras de captação e aplicação de recursos nos mercados bancários é um pouco mais antiga. Desde a década de 70, economistas americanos sustentaram que a restrição às operações de alto risco poderia aumentar o risco de falência dos bancos, por reduzir a possibilidade de ganhos maiores1. Os regimes de regulação existentes eram criticados e a perspectiva apontada era de flexibiliza-ção das regras restritivas2. Havia também economistas europeus que apontavam na mesma direção: a regulação restritiva poderia levar à redução dos lucros e, portanto, não seria adequada como forma de reduzir o risco de insolvência dos bancos3

Com a alteração de normas administrativas da Bolsa de Londres em 27 de outubro de 1986, foi permitida a participação de instituições financeiras estrangeiras. Isso foi particularmente interessante para as instituições financeiras americanas, porque na Bolsa de Londres era possível realizar operações sem as amarras do Glass-Steagall Act. Essa lei existia nos EUA desde o tempo de Roosevelt, tendo sido um produto do New Deal, que, com sucesso, enfrentou a Grande Depressão de 1929-33. O Glass-Steagall Act restringia a possibilidade de as instituições financeiras utilizarem os recursos captados do público em operações em nome próprio. O objetivo, evidentemente, era evitar que as instituições financeiras aplicassem esses recursos em operações especulativas, de modo a manter o sistema bancário mais seguro.

Em 1987, o megaempresário Ross Perot afirmou que "Os EUA precisam aumentar impostos, cortar gastos e parar de viver à base de crédito"4. Candidato independente a presidente dos EUA em 1992, Ross Perot obteve 18,9% dos votos, quase a metade do que fora obtido por George Bush. A despeito de sua significativa votação, especialmente considerando que Ross Perot disputou contra os candidatos dos dois grandes partidos americanos, seus conselhos não foram seguidos.

Em 1989, a queda do muro de Berlim foi vista como o triunfo do capitalismo sobre a economia esta-tizada. Parecia, assim, que a doutrina liberal era a mais adequada para impulsionar a economia e até

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mesmo para produzir bem-estar social para a população, uma vez que os resultados do chamado "socialismo real" nos países da Europa Oriental foram desastrosos.

Em 1999, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, membro do Partido Democrata, sancionou a revogação do Glass-Steagall Act, aprovada pelo Congresso, no qual o Partido Republicano detinha maioria apenas no Senado. Os EUA e o Reino Unido começaram uma "disputa" de quem regulamenta menos5. Tratava-se de aplicar, no campo jurídico, a ideologia neoliberal: o Estado deveria intervir o mínimo possível na economia, seja como regulador, seja como fiscalizador.

O excesso de crédito, posteriormente chamado de "excesso de liquidez", foi crucial para o surgimento da crise mundial. Mas o crédito farto no mercado, que provocou o "excesso de liquidez" no sistema financeiro como um todo, somente ocorreu porque os órgãos fiscalizadores e reguladores foram dando cada vez mais liberdade para os bancos operarem como queriam. Assim, a partir de uma decisão política (mais liberalismo), tomou-se uma decisão jurídica (menos regulamentação) com efeitos econômicos (maior liquidez no sistema financeiro).

Obviamente alguma catástrofe iria decorrer do retorno, ainda que gradual, às ideias liberais do século XIX.

2. A chamada "crise das hipotecas" em 2007

Em 2007, os jornais do mundo inteiro começaram a noticiar o alto número de inadimplemen-tos em determinados contratos de financiamento imobiliário nos EUA, chamados de subprime mortgage. Foi a chamada "crise das hipotecas".

A palavra mortgage é normalmente traduzida como "hipoteca ou penhor"6, porque, tecnicamente, mortgage é a garantia imobiliária do empréstimo (que inclui o direito de adjudicar para si o imóvel dado em garantia na hipótese de inadimplemento)7. Mortgage não é exatamente uma hipoteca, um penhor ou uma alienação fiduciária de imóvel, mas é, sem dúvida alguma, uma garantia real8.

Já na linguagem popular, jornalística e até mesmo econômica, o significado não é esse. As pessoas comuns, os jornais e os economistas usam a palavra mortgage com o significado de empréstimo com garantia imobiliária. Por isso se fala em pagamento e em quitação da mortgage, ou seja, da dívida que tem garantia imobiliária.

Normalmente o empréstimo é utilizado para aquisição do imóvel, que é dado em garantia. Mas o empréstimo pode ser concedido para finalidades diversas, tal como também ocorre no Brasil, no âmbito da carteira comercial dos bancos.

A palavra prime pode ser traduzida como "mais importante", ou "excelente"9. Falar em prime mortgage em termos econômicos significa dizer que o empréstimo está garantido plenamente, em razão de o valor do imóvel e a capacidade de solvência do devedor serem mais do que suficientes para pagamento do débito.

Já a palavra subprime não tem significado jurídico e dificilmente será encontrada em dicionários. Mas ela passou a ser largamente utilizada a partir de 2007, como adjetivo para a palavra mortgage. Desse modo, os jornais passaram a utilizar a expressão subprime mortgage com significado oposto ao deprime mortgage: se prime mortgage é o empréstimo excelente em termos de baixo risco, subprime mortgage é o empréstimo em que a possibilidade de inadimplência do devedor é grande e a garantia é insuficiente.

Veio então a pergunta: por que os bancos americanos e britânicos concederam empréstimos sem garantia suficiente para pessoas com alto potencial de inadimplência? Estariam os diretores dos bancos a praticar atos de gestão temerária ou seriam "amadores"? Ou delibe-radamente optaram por uma estratégia "agressiva", de modo a tentar maximizar os lucros e, consequentemen-te, os "bônus" que recebem anualmente em razão do aumento desses lucros?

Na maior parte dos casos, os empréstimos que foram o estopim da crise não foram concedidos sem garantia suficiente. Entre os anos 1997 e 2006, os imóveis sofreram acentuado aumento no seu valor de mercado nos Estados Unidos10. Contudo, esse aumento não era decorrente de um crescimento econômico generalizado, ou decorrente de um aumento extraordinário da população. Ao contrário, tratava-se apenas de um movimento especulativo, algo natural no sistema capitalista: as pessoas adquirem um determinado ativo (ações, imóveis, ouro, contratos futuros de commo-dities etc.) porque acreditam que esse ativo irá se valorizar. Quando muitas pessoas começam a adqui-

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rir determinado ativo, o valor desse ativo começa a subir, o que faz com que mais pessoas passem a adotar esse comportamento. Nessa situação fica configurada a existência de uma "bolha especulativa", que pode gerar imensos lucros para quem entra e sai do mercado no momento correto. Porém, toda bolha um dia estoura.

Os bancos americanos e britânicos concederam empréstimos para pessoas com relativamente alto potencial de inadimplência porque tais empréstimos estavam garantidos por imóveis em crescente valorização. No caso de inadimplência, bastaria retomar esses imóveis. Além disso, os empréstimos eram, na maior parte, de curto prazo, o que obrigaria os mutuários a contratar novo financiamento, com taxas de juros repactuáveis, ou desocupar o imóvel. A questão parecia singela: como os imóveis estavam se valorizando, o mutuário poderia até mesmo, ao final do contrato de financiamento, vender o imóvel e quitar o financiamento, com uma significativa margem de lucro. "As pessoas estavam pensando que poderiam ganhar muito dinheiro comprando casas, pois estavam vendo outras pessoas fazendo isso, ano após ano."11 O negócio parecia excelente para todos.

Contudo, a partir de 2007, os valores dos imóveis nos EUA e no Reino Unido começam a decair. Foi o fim do ciclo de altas decorrentes da especulação dos anos anteriores. Desse modo, os empréstimos que antes estavam totalmente garantidos pelos imóveis começaram apenas a ficar parcialmente garantidos, pois os valores dos imóveis passaram a ser inferiores aos dos débitos que eles garantiam. Além disso, as instituições financeiras tinham disseminado pelo mercado diversos títulos12 lastrea-dos nesses empréstimos. Não fosse o bastante, fundos de investimento administrados por várias dessas instituições financeiras adquiriram os títulos por elas mesmas emitidas que não conseguiram mercado, confiando que poderiam revendê-los no futuro a preço mais alto13. A questão fica mais interessante quando se constata que os agentes financeiros, as pessoas que aplicavam em derivativos (títulos) de créditos com garantia imobiliária e até mesmo as agências de riscos (que davam nota AAA para esses derivativos!) acreditavam que não haveria o estouro da bolha especulativa ou que simplesmente não estavam em uma bolha especulativa14. Mesmo pessoas precavidas, que apenas aplicavam dinheiro em fundos ou títulos qualificados como excelentes pelas agências de risco (como os do banco Lehman Brothers), ficaram dependendo de eventual cobertura do governo para recuperarem o dinheiro investido.

O número de reintegrações de posse de imóveis em razão da inadimplência de contratos cresceu assustadoramente, atingindo especialmente as parcelas mais...

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