O fenômeno da positivação do culturalismo no Código Civil de 2002

AutorJanaina Braga Norte/Marlene Kempfer Bassoli
CargoMestre em Direito Negocial, na área de concentração em Direito Civil. Advogada./ Doutora em Direito do Estado - Direito Tributário, pela PUC-SP. Professora dos
Páginas136-148

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Artigo extraído da Dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual de Londrina, de autoria do primeiro, sob a orientação do segundo.

1 Introduçåo

Por meio da análise dos conceitos de conhecimento, cultura, valores, direito, ontognoseologia, fenomenologia, culturalismo, positivação, socialidade, eticidade e operabilidade busca-se evidenciar o fenômeno da positivação do Culturalismo no Código Civil de 2002.

O estudo da teoria do conhecimento permite ver o Direito como ciência cultural, impregnada de valores. Toda essa axiologia envolvida na historicidade forma a cultura. Desse diálogo com a cultura, por meio de teorias inspiradas na fenomenologia, surge o Culturalismo na tentativa de compreender o Direito à luz dos valores.

No Brasil, este movimento filosófico teve grande fecundidade com o pensamento de Miguel Reale. A sua teoria tridimensional do Direito, aliada à sua ontognoseologia, apresenta o Direito como fato, valor e norma. Designado supervisor da "comissão elaboradora e revisora do Código Civil", Reale, consciente da inadequação do Código Civil de 1916 à realidade sócio-econômica contemporânea e guiado por suas convicções filosóficas culturalistas, elaborou um novo código civil fortemente influenciado por este movimento filosófico.

2 O direito como ciência cultural

A presente análise do Direito foi traçada sobre as bases da ontognoseologia de Miguel Reale, enaltecendo que o estudo do Direito se faça na relação sujeito e objeto, em razão de considerar o conhecimento como uma correlação (e não apenas relação) entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível.

Para o sujeito apreender, captar a essência ontognoseológica do objeto tem que utilizar determinado caminho ou método, que varia de acordo com o objeto e não conforme o sujeito, por isso as ciências naturais utilizam método diverso das culturais.

Da mesma forma que os métodos empregados para conhecer as ciências naturais e culturais são diversos, o papel que o sujeito desenvolve nestas ciências é diferente.

Nas ciências naturais, o sujeito exerce um papel de valor neutro, pois se trata do mundo do dado, do ser (o que é, simplesmente é). Enquanto que nas ciências culturais o sujeito exerce um papel axiologicamente orientado, já que se trata do mundo do construído, não do ser, mas do dever-ser.

O jurídico está no consciente humano por ser criação da humanidade. É a consciência intencional do sujeito que está doando sentidos ao Direito. De modo que, o Direito só existe porque a consciência intenciona.Page 137

O estudo da teoria do conhecimento permite ver o Direito como ciência cultural, impregnada de valores. A cultura, então, é toda essa axiologia envolvida na historicidade humana. Por isso, Reale considerou que o Direito deveria situarse em um contexto cultural. Defendeu que a teoria do conhecimento deve ser estudada em conexão com a teoria da cultura, pois não há conhecimento completo e absoluto sem que seja considerado o mundo circundante. A partir desta premissa afirma que não se pode analisar o Direito desconsiderando-se as condições históricas, socioculturais da sociedade.

Todas as relações estabelecidas entre os homens envolvem laços culturais e, consequentemente, juízos de valor. Tais relações são regidas pelas leis culturais, que se caracterizam por se referirem aos valores e se direcionarem a uma finalidade (teleologia). Quando uma lei cultural implica o reconhecimento de um comportamento obrigatório, sujeito a uma sanção, tem-se a chamada regra ou norma. Nos dizeres de Aquiles Côrtes Guimarães (2003) "[....] toda norma jurídica cristaliza um valor que, em última instância, decorreu da cultura. Ou seja, norma jurídica e fruto da cultura" (p. 14).

Por ser o Direito fenômeno histórico-social e mutante por natureza, reflete o ideário e as aspirações de um povo em um determinado espaço e tempo. Na ordem axiológica há possibilidade de alguns valores se sobreporem aos outros, como condição para sua realização. Esta permissão autoriza a construção de tábuas de valores individuais ou coletivas. Sendo uma das finalidades do Direito preservar e garantir a vivência de valores selecionados, por meio do fenômeno da positivação tal intento pode ser alcançado. Este processo é que será o garantidor da preservação e da vivência de valores fundamentais concebidos pelo homem e que não podem ser deixados ao sabor da sua suposta racionalidade.

Desse diálogo entre Direito, teoria do conhecimento e teoria da cultura, por meio de teorias inspiradas na fenomenologia, surge o Culturalismo na tentativa de compreender o Direito à luz dos valores.

3 O culturalismo de miguel reale

O pensamento culturalista foi uma importante contribuição para a produção filosófica brasileira. O interesse pelo estudo da cultura sob o prisma filosófico remonta a Tobias Barreto, precursor da Escola de Recife. No período contemporâneo, as teses culturalistas são retomadas e aprofundadas, figurando, como seu maior expoente, especialmente para o Direito, Miguel Reale.

O cerne das obras jurídicas e filosóficas de Miguel Reale é a cultura. Gerson Luiz Carlos Branco afirma:Page 138

Miguel Reale é um culturalista por sua própria definição e por ter fundado sua concepção de conhecimento, ciência e direito, a partir da ação do homem como um ser cultural, imerso na história e em constante relação com a natureza desenvolvida na linha do tempo. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p. 2).

Diz Miguel Reale que o "Culturalismo é a corrente de pensamento que reconhece a importância da cultura como paradigma, passando a examinar, sob sua luz, antinomias tradicionais" (1996, p. ix).

Sistematiza o estudo da Filosofia em três grandes ramos: [...] poderíamos concluir resumindo as tarefas da Filosofia nestas três ordens de pesquisas [...]:

  1. Teoria do Conhecimento , ou da validade do pensamento em sua estrutura e com relação aos objetos (Lógica e OntoGnoseologia);

  2. Teoria dos Valores ou Axiologia (Ética, Estética, Filosofia da Religião, Filosofia Econômica, etc.);

  3. Metafísica , como teoria primordial do ser ou, numa compreensão mais atual, como fundação originária do universo e da vida. (REALE, 2000a, p. 39-40).

É a partir da Ontognoseologia realeana que se pode compreender o Culturalismo. Esta concepção sugere uma nova teoria do conhecimento, enfatizando o processo cultural em sua perspectiva histórica e sem reducionismos (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p. 9). Segundo ela, não há uma oposição entre sujeito e objeto, mas uma inseparabilidade, embora distintos entre si.

Para Reale (2000a, p. 50), "...não existe propriamente retorno à teoria clássica do ser , como um 'dado'[...], mas ao contrário, uma tendência no sentido de uma indagação do conhecimento que seja, inseparavelmente, uma teoria do 'objeto' e do 'sujeito' [...]".

O filósofo entende como inegável a tendência atual à revalorização do problema do objeto . Assim, "[...] a valorização do não-subjetivo patenteia-se, por exemplo, na corrente fenomenológica de Husserl, bem como nas aplicações que Max Scheler, Nicolai Hartmann ou Martin Heidegger deram ao método fenomenológico, abrindo novas perspectivas sobre o ser ." (REALE, 2000a, p. 51).

Seguindo esta orientação Miguel Reale desenvolve a sua Ontognoseologia, afirmando ser essencial ao conhecimento a correlação entre sujeito e objeto , marcada pela integração de um componente subjetivo, a Gnoseologia e outro objetivo, a Ontologia stricto sensu .

Sob o prisma da Ontognoseologia, coloca-se o "[...] problema do homem na totalidade de seus elementos materiais e espirituais, integrando-o nas razõesPage 139 históricas de seu desenvolvimento, nas correlações...

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