Meio ambiente do trabalho no campo

AutorLorival Ferreira dos Santos
CargoDesembargador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 15ªRegião
Páginas102-137

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Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face?”

Cecília Meireles (Retrato)

Neste ano, quando a Justiça do Trabalho completa seus 70 anos de história e o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região comemora o seu jubileu de prata, oferecemos o presente estudo em que abordaremos as várias questões que envolvem a problemática do meio ambiente do trabalho no campo, tema rico e que reclama uma, ainda que breve, contextualização histórica, antes de adentrarmos nos fundamentos que alicerçam a proteção jurídica do trabalhador rural.

Ordenamento jurídico pátrio e proteção ao meio ambiente

A partir das Constituições norte-americana e francesa, as garantias do homem penetraram em todas as Constituições democráticas do mundo, tendo, com o decorrer dos tempos, um sensível progresso, no sentido de definir como direitos fundamentais tanto os de caráter estritamente individual quanto os de caráter social.

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A assunção do Estado do bem-estar social nasce com a positivação dos direitos denominados “sociais”, historicamente chamados de direitos humanos de segunda geração, decorrentes da reação ao desenvolvimento desenfreado do capitalismo industrial. Em nível Constitucional, a positivação de tais direitos deu-se, primeiramente, com a Constituição do México, de 1917, e, depois, com a Constituição alemã de Weimar, de 1919, ambas voltadas à exigência de prestações positivas ao Estado.

Assim é que se opera a crítica à construção do positivismo jurídico, vigente à época, indiferente à ética e à moral, o que consubstanciou a edificação do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento basilar da nova ordem instaurada, bem como modificou os conceitos tradicionais de democracia.

Tem-se, a partir deste contexto histórico, a instauração de um novo paradigma: a jurisdição constitucional, que tem no princípio da dignidade da pessoa humana seu epicentro, ou seja, o ponto de partida e de chegada de toda a interpretação constitucional.

O novo constitucionalismo revela-se instrumento de proteção da pessoa humana em face do Estado e, mais, instrumento capaz de fazer com que esse mesmo Estado atue positivamente para garantir as condições mínimas necessárias para a melhoria das condições de existência de seu povo, isto é, para proteger a exploração do homem pelo próprio homem.

O princípio da dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa constituem fundamentos do Estado Democrático da República Federativa do Brasil (Constituição Federal, art. 1º, inciso III).

A dignidade é considerada pela maioria da doutrina democrática dos Estados Latinos como um valor constitucional supremo. Segundo José Afonso da Silva, é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais1. Alguns ainda a rotulam de núcleo axiológico da Constituição. Isso gera uma mudança de paradigma. Significa dizer que o Estado existe para servir o ser humano e não o ser humano para servir o Estado.

Na ótica do professor Marcelo Novelino, a dignidade não é sequer um direito. Em verdade, seria um atributo que todo ser humano possui, independentemente de qualquer condição. Ou seja, não é o ordenamento jurídico que dá dignidade à pessoa. Ao contrário, é um atributo inerente a todos os seres humanos. O que a Constituição fez foi proteger esse atributo2.

Sob o prisma da importância dada à busca pela efetiva proteção à dignidade da pessoa humana, como marca da nova ordem jurídica constitucional vigente, não se pode olvidar que, em especial a partir da década de 1970, passou-se a discutir uma nova questão no cenário mundial, correlata à qualidade de vida do ser humano e sua própria sobrevivência: a proteção ao meio ambiente.

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Destaca-se, sobre este viés, a célebre Declaração de Estocolmo, de 1972, aprovada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, como o primeiro documento internacional que contemplou a necessidade dos povos em proteger o meio ambiente, elencando como premissa primeira:

“o homem tem direito à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada, em um ambiente que esteja em condições de permitir uma vida digna e de bem-estar; tem ele a grave responsabilidade de proteger e melhor o ambiente para as gerações presentes e futuras.”

A Constituição Federal de 1988, ao tutelar o meio ambiente, tem como finalidade a proteção da vida humana como valor fundamental. E, ao considerar incluído o local de trabalho no conceito de meio ambiente, a proteção constitucional se volta à prevenção dos riscos ambientais para resguardar a saúde físicopsíquica do trabalhador enquanto cidadão, conforme previsto, inclusive, no bojo de seu art. art. 7º, inciso XXII. Nossa Carta Magna também, no art. 170, enaltece o trabalho humano e estabelece, dentre outros, o princípio da defesa do meio ambiente (VI).

Merece destaque, ainda, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, reunida no Rio de Janeiro de 3.6.1992 a 14.6.1992 (ECO/92), que reafirmou a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano adotada em Estocolmo, na data de 16.6.1972, proclamando como seu primeiro princípio:

“Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza.”

Na esfera das normas infraconstitucionais, destacam-se a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981), a Consolidação das Leis Trabalhistas, Portarias e Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego e normas penais.

O Brasil também procedeu à ratificação do Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 17.11.1988, que, em seu art. 11, determina: “toda pessoa tem direito a viver em meio ambiente sadio e a contar com serviços públicos básicos”.

O surgimento do direito do trabalho

As sábias palavras de Hannah Arendt, citando Karl Marx, já celebravam a importância do trabalho para o homem:

“Tudo o que o trabalho produz destina-se a alimentar quase imediatamente o processo da vida humana, e esse consumo, regenerando o processo vital, produz — ou antes, reproduz — nova ‘força de trabalho’ de que o corpo necessita para seu posterior sustento.”3

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A par de inúmeros fatores políticos, sociais e econômicos que contribuíram para a consagração da intervenção estatal nas relações de trabalho como forma de realizar justiça social, tivemos manifestações institucionais positivas, destacando-se: a Encíclica Rerum Novarum, de 1891, que marcou a doutrina social da igreja; a Constituição do México de 1917; a Constituição de Weimar de 1919 e o Tratado de Versalhes, de 28.6.1919, que criou a Organização Internacional do Trabalho, com relevo para o fato de que os fundamentos do Direito do Trabalho foram realçados e dinamizados com a conjugação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e da superação da democracia meramente representativa pela democracia participativa, alcançando, assim, a sua legitimação social e política4.

Inicialmente, o contrato de trabalho podia resultar da livre estipulação entre as partes, mas, na realidade, era o patrão quem fixava as regras contratuais, as quais podiam ser modificadas a seu talante, inclusive quanto à sua terminação, mesmo porque não havia uma regulamentação relativa às relações de trabalho.

Com efeito, o “direito do trabalho surgiu como consequência da questão social que foi precedida da Revolução Industrial do século XVIII e da reação humanista que se propôs a garantir ou preservar a dignidade do ser humano ocupado no trabalho das indústrias”5.

A partir da revolução industrial, toda a história do Direito do Trabalho é marcada por conquistas sociais dos trabalhadores, alcançando postulados e princípios inerentes à relação de trabalho humano, visando, sobretudo, a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, com relevo para o princípio da proteção do trabalhador, inspirado no critério fundamental do Direito do Trabalho: o amparo ao trabalhador.

O surgimento do trabalho subordinado faz nascer o Direito do Trabalho, como resultado da afirmação do intervencionismo estatal em detrimento do liberalismo econômico. Esse intervencionismo estatal na esfera trabalhista, processado pela promulgação de leis e introdução no ordenamento jurídico do constitucionalismo social, fez consolidar o Direito do Trabalho que, no campo do trabalho subordinado, tem funcionado como instrumento de limitação do poder econômico.

A proteção ao meio ambiente do trabalho

Com relação ao meio ambiente do trabalho, o instrumento normativo da OIT mais importante é a Convenção n. 155 (aprovada pela 67ª Conferência Internacional do Trabalho — Genebra/1981), ratificada pelo Brasil (Decreto Legislativo n. 2/1992 e pro-mulgada pelo Decreto n. 1.254/1994), que trata da Segurança e Saúde dos Trabalhadores, a qual estipula que o país signatário deverá estabelecer uma política

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nacional com o objetivo de prevenir os acidentes e os danos à saúde que foram consequências do trabalho, reduzindo ao mínimo possível as causas e...

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