As medidas antiarbitrais como entraves do acesso à justiça

AutorSuzana Santi Cremasco - Tiago Eler Silva
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra, Portugal - Mestrando em Direito pela London School of Economics and Political Science, Reino Unido. Bacharel em Direito pela UFMG. Advogado.
Páginas413-421

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1. Introdução: a arbitragem como instrumento de acesso à justiça

Por acesso à justiça entende-se, na clássica definição de CAPPELLETTI e GARTH, a "possibilidade de as pessoas reivindicarem os seus direitos e/ou resolverem seus litígios sob os auspícios do Estado"1.

Ou, ainda, o direito assegurado ao jurisdicionado de ver os seus conflitos solucionados de forma eficiente e efetiva, dentro de uma ordem jurídica e de um procedimento justo:

É o acesso aos órgãos da justiça "encarregados de ministrá-la, instrumentalizados de acordo com a nossa geografia social, e também um sistema processual adequado à veiculação das demandas, com procedimentos compatíveis com a cultura nacional, bem assim com a representação (em juízo) - a cargo das próprias partes, nas ações individuais, e de entes exponenciais, nas ações coletivas, com assistência judiciária aos necessitados, e um sistema recursal que não transforme o processo numa busca interminável de justiça, tornando o direito da parte mais um fato virtual do que uma realidade social. Além disso, o acesso só é possível com juízes vocacionados (ou predestinados) - a fazer justiça em todas as instâncias, com sensibilidade e consciência de que o processo possui, também, um lado perverso que precisa ser dominado, para que não faça, além do necessário, mal à alma do jurisdicionado"2.

O acesso à justiça é uma garantia fundamental inserta nos principais ordenamentos jurídicos modernos3 que, para ser alcançada, importa na confluência de duas condições: em primeiro lugar, o sistema de solução de conflitos tem de se apresentar igualmente acessível e alcançável por todos e, em segundo lugar, ele há de produzir resultados que sejam individual e socialmente justos4 e, sobretudo, efetivos, isto é capazes de garantir "de forma prática e na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo que tem o direito de obter"5.

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O alcance do acesso à justiça compreende três grandes "ondas" renovatórias em que se busca, respectivamente: (a) - a ampliação dos mecanismos de assistência judiciária ao jurisdicionado; (b) - o reconhecimento dos direitos e interesses metaindividuais e o desenvolvimento de instrumentos de legitimação e tutela aptos a assegurá-los; e (c) - a facilitação da representação em juízo e, em última análise, do estar na justiça, por meio de alterações de diversas ordens, que englobam desde a estrutura dos órgãos encarregados do julgamento das controvérsias até o reexame de institutos clássicos de direito processual e de direito material.

Dentro do contexto da terceira grande "onda" renovatória está imersa a ideia que, para facilitar o estar em juízo, deve-se, necessariamente, ampliar o acesso aos meios de jurisdição, o que pode ser obtido através da criação de órgãos e procedimentos paraestatais para a solução de controvérsias específicas.

De fato, diante da diversidade de litígios existentes numa sociedade cada vez mais complexa - como o é a sociedade pós-moderna - nada melhor para garantir o acesso à justiça "que os procedimentos sejam adequados à sua solução, e que esta se dê por órgãos jurisdicionais e parajudiciais, sempre com vistas no custo-benefício, que deveria ser o norte de qualquer reforma das estruturas judiciárias em qualquer lugar do mundo"6.

Essa é, exatamente, a situação em que se enquadra a arbitragem. Como método alternativo de solução de conflitos, a arbitragem remonta aos mais pretéritos registros da convivência social humana, sendo descrita como: "um método aparentemente rudimentar de resolver disputas, que consiste em submetê-las a indivíduos comuns cuja qualificação é a de serem escolhidos pelas partes"7.

Contudo, mesmo que considerados os primeiros esforços no sentido de efetivação da arbitragem como instrumento de resolução de controvérsias na idade moderna - o que ocorreu com criação de Convenções Internacionais no início do século XX8 - foi a realidade política, econômica e social do Pós 2ª Guerra Mundial que forneceu os substratos fáticos mais fortes para a remodelação da arbitragem, a fim de que tal método de solução de litígios pudesse se adaptar e responder aos clamores de uma sociedade que passou a internacionalizar suas relações de forma exponencial e, consequentemente, também os seus conflitos.

Para além dos movimentos de insurgência de territórios até então controlados por outros Estados, o que fez com que houvesse proliferação de entes na comunidade internacional, é a partir de meados do século XX que o termo globalização começou a ter seus efeitos práticos, com grande fluxos migratórios de pessoas, com integração de economias, com a circulação de bens, serviços e capitais e, em suma, com o crescimento de um movimento expressivo que buscava recursos, oportunidades e mercados para além das fronteiras nacionais.

A diversidade de nacionalidades, culturas e ordenamentos jurídicos que se relacionavam e as dificuldades daí decorrentes foram responsáveis por apontar a necessidade premente de que se (re) pensasse a forma de solucionar as controvérsias existentes, de modo a adequá-la àquela nova e inevitável realidade.

Mesmo que considerada toda a grande contribuição esparsa de diversos países e seus Doutrinadores, o mérito inicial do desenvolvimento da arbitragem moderna é, de forma justa, atribuível à França, onde, desde muito cedo, se teve extrema devoção acadêmica e jurídica ao instituto arbitral. Neste primeiro momento, como método alternativo de solução de conflitos, seus defensores buscaram imensamente valorizar o caráter alternativo da arbitragem, em comparação à justiça estatal.

A grande preocupação, então, centrava-se na ideia de que a arbitragem deveria contar com independência, apresentando-se como um instituto autônomo, perfeitamente aplicável às novas realidades e que, principalmente, não necessitava da interferência estatal para alcançar a justiça. Afinal, se não restasse clara a autonomia da arbitragem perante as instâncias estatais, de nada valeria a tentativa de divulgação de tal meio alternativo de solução de conflitos, já que em última análise sempre haveria o contato e mesmo a subordinação das lides - e das decisões do tribunal arbitral - à jurisdição estatal.

Especialmente no contexto do comércio inter-nacional, tal contato era extremamente indesejável, já que os conflitos de maior vulto e importância levados à arbitragem eram justamente compensações pleiteadas por investidores contra Estados recém-criados ou independentes, que, tanto movidos pelo furor

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ideológico de retaliação aos então colonizadores, quanto pela premente necessidade de alcance de fontes, recursos e estruturas que permitissem aos novos governos algum modelo viável de governabilidade econômica, realizavam manobras de expropriação e esbulho dos ativos estrangeiros localizados dentro de suas fronteiras.

Confrontados com tais situações, os Doutrinadores franceses sustentavam nos seus estudos e mesmo nas sugestões que apresentaram para a redação dos diplomas legais nacionais e convenções internacionais, que a arbitragem tivesse a maior independência possível em relação ao Poder Judiciário, admitindo apenas a colaboração entre árbitros e juízes estatais, mas jamais a hierarquização ou a subordinação entre os mesmos.

Nesse período, são criadas e minuciosamente estudadas, por exemplo, as noções fundamentais de independência e autonomia das cláusulas arbitrais, que haveriam de ter eficácia, mesmo no caso de invalidade do contrato, bem como a noção de não aplicabilidade do direito material da sede da arbitragem, se essa não fosse a opção das partes no momento de definição das regras aplicáveis a disputa.

Certo é que os esforços despendidos pelos Doutrinadores europeus, com enfoque na contribuição francesa, obtiveram grande êxito, influenciando não apenas os ciclos acadêmicos, mas especialmente dando os contornos para as futuras legislações nacionais e tratados internacionais afetos a arbitragem. Desta forma, o aprofundado estudo sobre os conceitos basilares da arbitragem como método alternativo de solução de conflitos, vez que atendia a urgente demanda existente, principalmente na esfera comercial internacional, encontrou grande permeabilidade e aceitação.

Destarte, nas décadas de 70 e 80 do Século XX, duas condições ocorrem de forma simultânea, permitindo a consolidação da arbitragem na esfera internacional. A primeira condição é que na segunda metade daquele século grande parte das importantes convenções sobre arbitragem já estavam criadas, como a Convenção de New York9 de 1958 e a Convenção de Washington de10 1965, fazendo com que os diplomas legais que norteariam os parâmetros da arbitragem nos diversos ordenamentos jurídicos quando conclamada como método de resolução de conflitos estivessem consolidados. A segunda é a acentuada crise decorrente da principal matriz energética do mundo - o petróleo - que sendo detido em grande parte por países do Oriente Médio que, de forma cíclica e reiterada, apresentam insurgências e mudanças abruptas de governo, deram origem a diversos conflitos comerciais envolvendo partes das mais distintas nacionalidades.

Nesse cenário, surgindo os conflitos, a arbitragem já se encontrava devidamente aparelhada para lidar como os mesmos da forma devida, superando os entraves representados pela falta de acuidade técnica nos julgamentos estatais, a morosidade das Cortes nacionais e a publicidade a elas inerentes, bem como a desconfiança de uma eventual parcialidade de juízes estatais quando confrontados com causas nas quais em um dos polos em litígio estivesse, justamente, o seu Estado nacional, em confronto com outro Estado ou, sobretudo, com corporações estrangeiras.

2. As medidas antiarbitrais

Uma vez consolidada a arbitragem como método, por excelência, escolhido pelos grandes...

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