Mediação: uma terceria de caráter político-pedagógico

AutorMaria da Graça dos Santos Dias; Airto Chave Junior
CargoProfessora permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí; Mestrando do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí
Páginas127-144

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Introdução

Vivemos em uma época de intensas transformações sociais, de maneira que necessitamos de algo que supere as condições jurídicas estabelecidas no modelo estatal de resolução de conflitos. 12O dogmatismo jurídico não mais responde de maneira adequada às necessidades da sociedade contemporânea. As instituições de direito precisam responder à crescente complexidade dos conflitos emergentes, fato que desafia a efetividade de seus códigos e de suas normas. Esta situação não está referida somente à quantidade de demandas, mas, principalmente, à diversidade e à complexidade dos problemas colocados a sua prova e derivados do pluralismo cultural, emergido do mundo globalizado.

Diante dos desafios que se colocam às instituições jurídicas na contemporaneidade, reflete-se, neste artigo, sobre a Mediação e seu significado como alternativa de resolução extrajudicial de conflitos.

Vinculada aos símbolos da Justiça, a Mediação envolve os sujeitos - partes - na construção do direito, através de um processo de comunicação dialógica. Aparece desde o início da história jurídica de nossa civilização e caracteriza-se, hoje, como uma maneira moderna de organizar o direito, ou seja, reinventa o que foi vivido no direito primitivo.

A Mediação pode ser compreendida como um instrumento de exercício da cidadania, à medida que constitui uma experiência pedagógica de resolução de conflitos, ajudando a superar diferenças e a realizar tomadas de decisões que contemplem necessidades, desejos e interesses das partes envolvidas. Transcende, assim, a dimensão de resolução adversarial de disputas jurídicas. Page 128

A sabedoria é a referência da práxis da Mediação e a comunidade seu locus de realização. Processa-se, assim, um deslocamento de poder, do judiciário ao comunitário.

Explicita-se a Mediação pela ação profissional de um terceiro em uma situação de conflito, com a intenção de levar as pessoas, ou sujeitos conflitantes, a um processo de reflexão que lhes permita compreender a si mesmos, ao outro e à situação objetiva de conflito. Constitui-se num projeto de caráter político-pedagógico que tem por objetivo a realização da autonomia, da cidadania e dos direitos humanos. Desse modo, revela-se como uma alternativa de superar a crise em que se encontra o Estado na realização da jurisdição e da justiça.

1 Considerações Preliminares

Pode-se dizer que a Mediação constitui um espaço simbólico de reconstrução do conflito. Há um enigma na mediação que deve ser descoberto: o Outro. O outro da Mediação não é um sujeito abstrato, alienado, marginalizado, um adversário. Conceitos estes vigentes na Modernidade, que não aceitou o distinto, o diferente, criando modelos aos quais todos deviam adaptar-se para não serem rejeitados ou excluídos.

Na Mediação, o outro é percebido como o distinto, que permite transformar-me, exercer a criatividade na e pela experiência do diálogo. Há, entretanto, uma impossibilidade de acesso pleno ao enigma, à diferença, do outro, embora seja através do outro que me descubro. Necessito do outro não como fantasma, mas como o distinto que me desinstala, me afronta, oferece-me resistência, provocando-me a superar meus próprios limites. O outro não se caracteriza com um tu distante, desconexo de mim, mas um alter-ego, uma alteridade.

A Mediação envolve sempre a admissão da diferença, do distinto, da alteridade; pois, quando me coloco na mirada do outro, posso ver-me a mim mesmo, tendo chances de me transformar. Page 129

O conflito e a relação dialógica com o outro podem transformar-se em experiência pedagógica. O outro me incita ao encontro comigo mesmo, permite deparar-me com meu próprio desejo. Daí falar-se na reconstrução simbólica do conflito, com a participação das partes - o um e o outro - ajudados por um terceiro, o mediador. O conflito não constitui apenas um problema, mas uma possibilidade de realização da autonomia, por isso tem um caráter pedagógico. Como atividade pré- judicial, a Mediação realiza-se na esfera comunitária, constituindo-se em uma forma de realização da cidadania.

A Mediação não aponta apenas para o futuro; precisa, também, reconstruir simbolicamente o passado. Seu foco de atenção não é somente a situação concreta do conflito, mas, especialmente, os sentimentos dos sujeitos nela envolvidos.

Destaca-se a importância da aceitação do Mediador pelas partes envolvidas no conflito. O Mediador aparece como figura emblemática para a realização da justiça. Sua intenção consiste em contribuir na melhoria da qualidade de vida das pessoas, pela transformação das relações interpessoais. O Mediador não pretende apenas levar à solução do conflito, por meio de um acordo final, mas revaloriza o potencial de cada uma das partes para que estabeleçam relações mais satisfatórias, fundamentadas nas necessidades, desejos, sentimentos e opções de cada um. Procura conhecer os motivos do conflito e as significações a ele atribuídas pelas partes, bem como ajuda os conflitantes a encontrarem saídas alternativas.

A Mediação constitui, assim, uma experiência terapêutico-pedagógica, em que as partes aprendem a fazer concessões mútuas, a reconhecer diferenças, a compreender seus interesses, desejos e afetos, a fazer opções, tomar decisões e assumir responsabilidades.

O Direito, tradicionalmente, conota ao conflito o caráter de litígio. Esta é uma maneira negativa de ver o conflito. Em uma compreensão waratiana, o conflito não é concebido como um problema a ser resolvido, mas como um enigma a ser vivido.

Há sempre, na Mediação, o atravessamento do elemento afetivo; por isso, interpretam-se os afetos e não a lei. Dessa maneira, os conflitos econômicos não são mediáveis, mas sim negociáveis, conciliáveis. Recorre-se à Mediação em Page 130 conflitos familiares, em questões e reivindicações comunitárias e sociais, em disputas e conflitos internacionais.

O ofício do Mediador exige uma formação humanista, fundada em conhecimentos da Psicanálise, Socioantropologia, Psicologia, Serviço Social, Teoria Comunicacional, Filosofia, Semiologia, entre outros. O lugar do Mediador não é um lugar de poder, mas sim um locus da sensibilidade e da compreensão, pois a mediação deverá possibilitar um re-olhar para si mesmo a partir do olhar do outro, daí sua conotação psico-pedagógica.

2 O Caráter Psico-Pedagógico da Mediação
2. 1 A pessoa como centro da Mediação

A Mediação tem por foco a Pessoa. Disso decorre a importância da confiança que as partes devem ter no Mediador, que não é um julgador moralista, mas alguém capaz de compreender e aceitar as pessoas envolvidas no conflito. São elas que sabem o que sofrem, devendo dar a direção ao processo de mediação.

A pessoa demanda compreensão de seus sofrimentos e esperanças, ansiedades e satisfações. Necessário torna-se levá-la a refletir sobre sua vivência, como sujeito protagonista de sua história. Compreender a experiência da pessoa e o significado que esta lhe atribui, ver a vida como ela lhe aparece 3, significa dar-lhe uma oportunidade de assumir sua condição de sujeito, de exercer sua cidadania, de ter autonomia.

A experiência da mediação contribui para que as pessoas se tornem mais eficazes, no sentido rogeriano do termo: sou mais eficaz quando posso ouvir a mim mesmo, aceitando-me, e quando posso ser eu mesmo 4. A aceitação de si mesmo é condição de possibilidade da transformação pessoal. As relações se tornam vitais e significativas quando nos aceitamos como somos, porque isto implica a possibilidade de também compreendermos e aceitarmos o outro. Na maioria das vezes temos a tendência imediata de julgar o outro e não de compreendê-lo.

Segundo Rogers, compreender implica correr riscos, pois, à medida que compreendo o outro, transformo a mim mesmo. Compreender o outro significa Page 131 reconhecê-lo como alteridade, chamá-lo à condição de pessoa, contribuir para a sua autonomia. Ao sentir-se compreendida e aceita, a pessoa encontra motivos para transformar-se.

Compreensão e aceitação são fenômenos correlatos, que reduzem os motivos de receio ou as defesas que impedem a expressão de sentimentos. Rogers afirma: descobri que é quando posso aceitar uma outra pessoa, o que significa especialmente aceitar os sentimentos, as atitudes e as crenças que a constituem como elementos integrantes reais e vitais, que eu posso ajudá-la a tornar-se pessoa: e julgo que há nisto um grande valor. 5

A pessoa que é compreendida e aceita apresenta uma tendência a abandonar as falsas defesas para enfrentar a vida de um modo mais construtivo, compreendendo-a como um devir permanente.

O Mediador assume a tarefa de contribuir para que as pessoas expressem o conflito nas dimensões de sua compreensão, de seus sentimentos e de sua ação, a fim de que possam reorganizar suas experiências e chegar a uma apreensão mais satisfatória de sua situação de vida e de suas atitudes.

Afirma Rogers: não posso fazer mais do que tentar viver segundo a minha própria interpretação da presente significação da minha experiência, e tentar dar aos outros a permissão e a liberdade de desenvolverem a sua liberdade interior para que possam atingir uma interpretação significativa da sua própria existência.6

O sentimento é a expressão do mais íntimo da pessoa e, se for partilhado, fala mais profundamente aos outros. O Mediador, ao permitir a expressão de sentimentos, auxilia a pessoa a desenvolver a percepção de si mesma, a compreender o outro e a significar sua própria existência. Isso revela o caráter terapêutico e pedagógico da Mediação.

A relação centrada na pessoa - relação pessoa a pessoa - torna-se mais pedagógica porque não se baseia em sintomas, antes...

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