Segurança pública, mediação de conflitos e polícia comunitária: uma interface

AutorLilia Maia de Morais Sales; Plauto Roberto Lima Ferreira; Andrine Oliveira Nunes
Páginas63-81

A 'arte da vida' significa coisas diferentes para os membros das gerações mais velhas e mais novas, mas todos a praticam e não poderiam deixar de fazê-lo. Espera-se que todo praticante da vida, tal como os artistas, seja considerado plenamente responsável pelo produto do trabalho e louvado ou execrado por seus resultados. (BAUMAN, 2008, p. 76).

A inteligência é a nossa capacidade de conhecer e manipular o mundo. Ela tem haver com o poder. A sabedoria é a graça de saborear o mundo. Ela tem haver com a felicidade... A inteligência é muito importante. Ela nos dar meios para viver. Mas somente a sabedoria é capaz de nos dar razões para viver. (ALVES, 2009, p. 53).

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Introdução

A importância do tema da segurança pública pode ser compreendida a partir da dimensão do papel que a polícia desempenha em qualquer sociedade. 123A forma de atuação da polícia pode até mesmo definir o caráter do governo, ou seja, se a polícia age prioritariamente de forma repressora, esse governo passa a ser reconhecido como arbitrário, mas se os governantes conseguem nortear a ação policial, respeitando os direitos fundamentais e os limites legais, o governo recebe o selo de democrático. Isso justifica o fato de que alguns regimes autoritários são chamados de "Estados policiais".

A responsabilidade funcional de manter a ordem pública faz com que ser policial não seja apenas um ofício, e sim uma causa. Percebe-se que, para a maioria das pessoas, a distância dos riscos e dos perigos é uma necessidade. Já para os policiais isso é uma profissão. Com foco no que se entende por segurança pública, por polícia e por atuação policial, busca-se demonstrar que a eficiência dos agentes de segurança deve estar associada ao conhecimento da realidade dos conflitos, qualificação profissional e ao respeito aos direitos humanos. A manutenção de um Estado Democrático de Direito está fundamentada pelo desenvolvimento da Page 64 sociedade por meio da educação, do acesso irrestrito à justiça e da proteção aos direitos individuais e sociais.

Para tanto, o combate a práticas ilícitas requer do policial conhecimento sobre o nexo de causalidade, ou seja, a relação entre a conduta do sujeito e o resultado delitivo, sobre os tipos penais, sobre a penalidade a ser imposta em relação ao fato delituoso, sobre as causas que originaram o comportamento ilícito e, sobretudo, sobre os direitos humanos, a fim de que sua ação seja adequada ao conflito encontrado.

A integração entre polícia e comunidade expressa um caminho por meio do qual a segurança pública passa a ser compreendida e vivida como responsabilidade de todos, facilitando a resolução dos conflitos por gerar reciprocidade de confiança entre policial e comunidade. Definir o perfil do policial nesse novo contexto da segurança estimula a necessidade de uma formação fundada nos direitos humanos. Essa formação permitirá a sua compreensão como detentor de dignidade humana e consiga perceber o cidadão da mesma forma.

A aproximação da polícia com a comunidade, criando assim a polícia comunitária, exige o estudo sobre os conflitos vividos em cada localidade e o encontro de mecanismos para a sua boa administração. A mediação de conflitos apresenta-se como instrumento adequado de solução de controvérsias surgidas no seio da comunidade que necessitam do diálogo para a solução. Daí a relação entre segurança e mediação de conflitos. Uma nova polícia passa a ser moldada: uma polícia democrática, comunitária e solidária.

1 Polícia e Segurança Pública

Os romanos utilizam o termo grego politeia, que corresponde para eles a dois conceitos, o de res pública, a "coisa pública", e o de civitas, que designa os "negócios da cidade" derivado da palavra polis. Quando se considera a etiologia, existe comum acordo em ligar o termo 'polícia" ao grego politeia. Utilizando a sua Page 65 derivação do latim, tem-se politia ou polícia para nós, que quer dizer, em sentido amplo, organização política, ordem política erigida pelo Estado que resulta da instituição de princípios que impõem respeito às normas para que se garantam e protejam as regras jurídicas preestabelecidas (MONET, 2002, p. 20).

Na Grã-Bretanha, a palavra "polícia" designa a uma política pública posta em ação num domínio de atividades sociais determinadas, como, por exemplo, a construção de casas para os pobres. Foi durante o século XIX que a palavra "polícia" ganhou na Europa seus significados atuais, através de um duplo movimento de especialização. Primeiramente, especialização policial e, logo depois, especialização judiciária (MONET, 2002, p. 23).

No Brasil, a polícia começou oficialmente no dia 10 de maio de 1808, bem como a sua divisão em militares e civis. Com a chegada da família real ao Rio de Janeiro, Dom João VI nomeou o desembargador, advogado e ouvidor da Corte, Paulo Fernandes de Viana, ao cargo de Intendente Geral de Polícia. Seria o que corresponde hoje às atribuições de um Prefeito com um Secretário de Segurança Pública. Sua missão incluía, além de policiar as ruas, aterrar pântanos, organizar o abastecimento de água, melhorar a iluminação pública, a coleta de lixo e o esgoto, construir estradas, pontes, praças e passeios públicos (GOMES, 2007, p. 229).

A Polícia Militar possui suas origens na Guarda Real, de onde assimilou a estética militar, fundamentada na hierarquia e na disciplina. Em 1831, o então regente, Padre Antonio Diogo Feijó, autoriza a criação dos corpos policiais civis e militares nas províncias. Com a proclamação da República em 1891, o Brasil transforma suas províncias imperiais em estados regionais. Esse federalismo, mesmo que apenas formal, exigia dispositivos de dissuasão e mediação política e econômica com o poder central, a União. Montam-se pequenos exércitos estaduais forças públicas, guardas, brigadas e outras designações do gênero consoantes à tradição ou cultura local (MIR, 2004, p. 418).

A história brasileira foi construída por levantes internos, por meio dos quais seus líderes buscavam a legitimação do poder pela intimidação da população através de seu braço armado, a polícia. Isso fez com que a imagem dessa instituição de característica militar fosse associada à repressão e à violência. Page 66

A missão primordial da polícia é a manutenção da ordem pública, do bemestar coletivo e do respeito às instituições ditas como indispensáveis para que o Estado cumpra seus objetivos. A função precípua da polícia é assim a vigilância à aplicabilidade das leis, ou seja, salvaguardar a aplicação das normas que nos organizam em sociedade, trabalho que deve ser pautado na proteção do bem-estar social ou do bem público.

Assim, "a Polícia pode ser definida como a organização destinada a prevenir e reprimir delitos, garantindo assim a ordem pública, a liberdade e a segurança individual" (MORAES, 1992, p. 25), sendo esta definida "como a prática de todos os meios de ordem de segurança e de tranqüilidade pública. A polícia é um meio de conservação para a sociedade." (MORAES, 1992, p. 24). "A Polícia, em seu ideal de bem servir, deve ser tranqüila na sua atuação, comedida nas suas ações, presente em todo lugar e sempre protetora, velando pelo progresso da sociedade, dos bons costumes, do bem-estar do povo e pela tranqüilidade geral." (DALBOSCO, 2007, p. 26).

A polícia, portanto, deve ter sua atuação pautada na estrita legalidade e ser alicerçada no respeito aos direitos humanos, propiciando a defesa à cidadania e ao bem-estar coletivo. Ao longo do tempo, no entanto, a credibilidade da polícia vem sendo afetada em função do envolvimento de vários de seus segmentos e agentes em atos ilícitos4 e desrespeito aos direitos humanos. Tais atividades corrompem a estrutura policial, podendo desencadear no envolvimento de seus membros em uma gama de crimes como: ameaças, extorsões, sequestros, assaltos, narcotráfico e torturas.

Outro problema que afeta a polícia é a dificuldade enfrentada pelas autoridades públicas frente ao "poder paralelo" imposto pelo crime organizado. Esse fato resulta no sentimento de incapacidade de combater às facções criminosas, sendo intensificada pela insatisfação quanto aos baixos salários, carga horária excessiva e baixa qualificação desses profissionais de segurança pública. Esse descontentamento pode facilitar o envolvimento de policiais com o mundo do crime.

Além do envolvimento com crimes e dos problemas organizacionais, outros aspectos que dificultam a atuação adequada dos agentes de segurança pública são Page 67 a concepção sobre a função da polícia e a formação dos policiais. Ainda existe fortemente a concepção de que as instituições policiais devem existir com fins exclusivamente de repressão5. Essa concepção repressora da polícia resultou na dificuldade de compatibilizar os direitos humanos e a segurança pública. A manutenção da ordem nas ruas, usada para justificar a ação repressora por parte de polícia, não somente tende à restrição dos direitos dos cidadãos como é ineficaz.

Essa visão distorcida pode ser modificada se observarmos as ações policiais como parte de um sistema em que a função coercitiva deve ser enquadrada nos limites do estado de direito, além de complementar essas ações com a participação de vários atores sociais. Bem como compreender que a violência é um fenômeno social, em que a responsabilidade policial deve ser compartilhada com participação da comunidade, por meio da responsabilidade de todos.

2 Atuação Policial e Direitos Humanos

Inverso da desordem, do caos, da desarmonia social, porque visa preservar a incolumidade da pessoa e do patrimônio, a ordem pública é uma situação de pacífica convivência social, distante de ameaças de violências ou sublevação que...

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