A Matriz do Trabalho na Constituição de 1988 e o Atleta Profissional de Futebol

AutorMauricio Godinho Delgado/Gabriela Neves Delgado
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho/Doutora em Filosofia do Direito (UFMG: 2005) e Mestre em Direito do Trabalho (PUC Minas: 2002)
Páginas19-32

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1. Introdução

A ordem jurídica brasileira, desde os anos de 1940, tem estabelecido o Direito Trabalhista como marco geral de regulação do mercado de trabalho, com seus princípios, regras e institutos jurídicos.

Com fulcro na relação de emprego, a Consolidação das Leis do Trabalho, surgida em 1943 e permanentemente atualizada nas décadas seguintes, tem fixado a normativa aplicável às relações entre empregados e empregadores no Brasil.1

Algumas categorias de trabalhadores, por motivos distintos, ficaram ao largo da regulação celetista durante décadas, tal como aconteceu com os empregados rurais e com os empregados domésticos, originalmente excluídos pelo texto expresso da própria CLT, em seu art. 7º.

Os atletas profissionais, durante décadas, também não receberam atenção do legislador trabalhista, seja em face de sua parca organização política e sindical, seja em vista da insuficiente profissionalização que prevalecia em quase todo o cenário desportivo do País – salvo quanto ao futebol –, seja em decorrência da elevada peculiaridade da forma de organização das atividades esportivas e de seu sistema de labor.

Os primeiros diplomas normativos que surgiram nesta seara, considerado o período anterior à Constituição de 1988, circunscreveram-se aos contratos de

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trabalho dos atletas profissionais de futebol, caracterizando-se por insatisfatória construção legislativa.

Com o advento da Constituição Democrática de 88, importantes parâmetros normativos despontaram com respeito à regulação do trabalho no País, tornando inevitável maior avanço com relação à normativa infraconstitucional, seja quanto ao atleta profissional de futebol, seja quanto à regulação das atividades laborativas dos atletas brasileiros das demais modalidades desportivas existentes ou em estruturação.

Nesse novo quadro constitucional, despontou, em primeiro lugar, no início da década de 1990, a Lei Zico, embora ainda se caracterizando por excessiva timidez na seara normativa enfocada. Em 1998, entretanto, surge a Lei Pelé, diploma bem mais abrangente e inovador no quadro regulatório das relações trabalhistas no desporto brasileiro.

Submetida a diversas alterações ao longo de 14 anos de existência, a Lei Pelé, especialmente em sua nova versão atualizada pela Lei n. 12.395, de 2011, já coloca a normativa brasileira concernente às relações laborativas no desporto do País em melhor grau de harmonia com a matriz constitucional inaugurada em 1988.

2. A matriz constitucional do trabalho

A Constituição da República, promulgada em cinco de outubro de 1988, estruturou no País o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), tendo como fundamentos, entre outros, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV).

A vinculação feita pelo Texto Máximo de 1988 entre a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho é indissolúvel, por ser o trabalho um dos principais instrumentos assecuratórios da dignidade do ser humano na sociedade e na economia. à luz da Constituição Federal do Brasil, o trabalho tem status jurídico absolutamente diferenciado, por ser não apenas fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, IV), mas também, ao mesmo tempo, direito social (art. 6º), valor social (art. 1º, IV), primado da Ordem Social (art. 193), além de princípio que rege a Ordem Econômica (art. 170, caput, VIII: princípio da valorização do trabalho, especialmente do emprego).

O conceito normativo estruturante da Constituição da República, consubstanciado no Estado Democrático de Direito, compõe-se, segundo Mauricio Godinho Delgado, de um tripé conceitual, em que a valorização do trabalho, especialmente do emprego, cumpre papel decisivo. Este tripé constitui-se dos seguintes elementos: a pessoa humana e sua dignidade; a sociedade política, democrática e inclusiva; a sociedade civil, democrática e inclusiva2.

Nesse tripé conceitual decisivo, o trabalho e especialmente o emprego cumprem função notável, por se inscreverem entre os instrumentos mais efetivos de garantia social da dignidade da pessoa humana, da busca da democratização da sociedade política, com seu direcionamento inclusivo, e da busca de uma sociedade civil também democrática e inclusiva.

Esse quadro constitucional dirigente do conjunto da vida brasileira naturalmente influencia todos os campos jurídicos, até mesmo, é claro, o segmento desportivo.

A partir dessa matriz constitucional inaugurada em outubro de 1988, portanto, é que tem de ser lida e compreendida a ordem jurídica especial que rege o importante mundo do trabalho empregatício desportivo no País.

3. A matriz constitucional do desporto

A sociedade civil, como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, caso estruturada de modo democrático e inclusivo, compõe-se do reino das instituições, ideias e movimentos privados, sociais e coletivos, em contraponto à sociedade política, caracterizada pelo universo das instituições públicas e estatais.

Integram a sociedade civil a pessoa humana, as unidades familiares, os movimentos sociais e coletivos, as religiões e Igrejas, os meios de comunicação de massa, as instituições privadas e sociais, as empresas e o mercado econômico, a cultura, a educação, o desporto, o meio ambiente, além de várias outras criações da natureza e da inteligência humana.

Na Constituição da República, a sociedade civil está referida principalmente por quatro títulos destacados: o Título I (“Dos Princípios Fundamentais”) e o

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Título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), ao lado do Título VII (“Da Ordem Econômica e Financeira”) e do Título VIII (“Da Ordem Social”). Naturalmente que ela também comparece nos demais títulos constitucionais, embora em menor intensidade, já que eles enfocam notadamente a sociedade política, sua estrutura, instituições e dinâmica3.

As atividades desportivas integram dimensão importante da sociedade civil, envolvendo impressionante número de indivíduos e instituições em qualquer país. Nessa medida, tais atividades estão mencionadas na Constituição da República, ao lado da educação e da cultura, no interior do Título VIII do Texto Máximo, regente “Da Ordem Social” (art. 217).

O preceito constitucional que trata do desporto (art. 217), compondo a Seção III do Capítulo III do Título VIII da Constituição, estabelece parâmetros para a atuação do Estado nesse segmento social, sem arranhar, em qualquer medida, a lógica estruturante de toda a obra magna de 1988. Observe-se o texto do mencionado dispositivo da Constituição:

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

I – a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III – o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;

IV – a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§1º – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei.

§2º – A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§3º – O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.

A matriz constitucional relativa ao desporto, como se percebe, não entra em choque com a matriz constitucional relativa ao trabalho. As duas se harmonizam, compreendendo o Texto Máximo da República que a proteção e o incentivo às manifestações esportivas coadunam-se com o caráter e os objetivos democráticos e inclusivos que devem dire-cionar a sociedade civil, inclusive com a prevalência constitucional do trabalho e especialmente do emprego.

Na medida dessa harmonia e inter-relação de esferas constitucionais é que deve ser compreendida a legislação desportiva do País, ao menos a contar de cinco de outubro de 1988.

4. Balizamentos constitucionais para o contrato do atleta profissional – histórico normativo

O histórico da legislação trabalhista brasileira na seara do contrato do atleta profissional deve se balizar por dois momentos: o período anterior ao Texto Magno de 1988 e o período descortinado pela nova Constituição da República.

Registre-se, no exame desse histórico, que as primeiras manifestações legislativas nesta seara dirigiram-se essencialmente ao atleta profissional de futebol, por ser este esporte absolutamente hegemônico na História do Brasil, sendo o primeiro, ao longo de décadas, que efetivamente se profissionalizou no campo desportivo do País.

A partir das décadas mais recentes é que se tornou massivo o processo de profissionalização de outras modalidades no desporto brasileiro, para além do futebol. Talvez por essa razão é que somente depois de 1988 os diplomas legais especializados tiveram a preocupação de se dirigir a qualquer atleta profissional, ao invés de somente ao clássico jogador de futebol.

4. 1 Evolução Normativa Pré-1988

Na ordem jurídica brasileira, desde 1943, o padrão da Consolidação das Leis do Trabalho...

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