O lugar do conceito de privacidade numa sociedade cada vez mais orwelliana

AutorPedro Miguel Alves Ribeiro Correia - Inês Oliveira Andrade de Jesus
CargoDoutorado em Ciências Sociais na Especialidade de Administração Pública pela Universidade Técnica de Lisboa (UTL) - Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa (NOVA)
Páginas135-161
Direito, Estado e Sociedade n.43 p. 135 a 161 jul/dez 2013
O lugar do conceito de privacidade numa
sociedade cada vez mais orwelliana
Pedro Miguel Alves Ribeiro Correia*
Inês Oliveira Andrade de Jesus**
Em cada patamar, diante do poço do elevador, o rosto enorme f‌itava-o
da parede. Desses retratos de tal maneira conseguidos que os olhos
nos seguem os movimentos. O GRANDE IRMÃO ESTÁ A VER-TE,
rezava por baixo a legenda1.
1. Introdução
No antigo mundo rural, caracterizado pela pequena dimensão dos aglo-
merados populacionais e pela difícil mobilidade, as pessoas conheciam-se
todas umas às outras e sabiam facilmente de todos os acontecimentos da
aldeia, não tendo cabimento o conceito de privacidade.
Com o advento do transporte fácil e economicamente acessível, o
aparecimento de grandes centros urbanos e o desenvolvimento e difu-
são da imprensa escrita, surgiu a consciencialização da necessidade de
preservar o respeito pela vida privada. Essa necessidade foi acentuada
numa primeira fase, com a criação, em 1946, do primeiro computador2
* Doutorado em Ciências Sociais na Especialidade de Administração Pública pela Universidade Técnica
de Lisboa (UTL); Licenciado em Estatística e Gestão de Informação pela Universidade Nova de Lisboa
(NOVA); Professor do Master in Public Administration – Administração da Justiça, do Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa (ULisboa); Investigador integrado no Centro
de Administração e Políticas Públicas (CAPP), ISCSP-ULisboa; Consultor da Direcção-Geral da Política de
Justiça (DGPJ) do Ministério da Justiça de Portugal. Endereço para correspondência física: Instituto Supe-
rior de Ciências Sociais e Políticas, Rua Almerindo Lessa, 1300-663 Lisboa, Portugal. E-mail: pcorreia@
iscsp.ulisboa.pt.
** Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa (NOVA); Mestre em Direito pela Universidade
Nova de Lisboa (NOVA); Licenciada em Direito pela Universidade Nova de Lisboa (NOVA); Consultora da
Direcção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) do Ministério da Justiça de Portugal. E-mail: 000943@fd.unl.pt.
1 ORWELL, 1949.
2 Denominado ENIAC (Electronic Numerical Integrator and Computer), com um peso de 30 toneladas, 33
metros de comprimento e 3,3 metros de altura.
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e, numa segunda fase, com a concepção (entre 1989 e 1991) e posterior
democratização da internet3.
Actualmente, a privacidade é ameaçada, sobretudo, pelos tratamentos
automatizados de dados pessoais e, em particular, pela expansão das redes
sociais. Na sociedade de informação em que vivemos, a recolha, o proces-
samento, a troca e a divulgação de dados pessoais é cada vez maior, fazendo
da sociedade uma sociedade vigilante e vigiada. Além disso, a tecnologia
está, a cada dia que passa, mais avançada e o valor dado à informação é
cada vez maior.
Na nossa própria casa, espaço privilegiado da privacidade, somos cons-
tantemente espreitados pelas entidades fornecedoras de água, luz, gás,
telefone, televisão e internet, que recolhem os nossos dados pessoais para
efeitos de facturação e registam todas as informações de consumo.
O nosso carro, devidamente matriculado, pode ser identif‌icado pelas
autoridades policiais, nas portagens e até nas bombas de gasolina, permi-
tindo que estas acedam aos nossos dados pessoais.
Quando utilizamos os transportes públicos e validamos o nosso passe,
somos mais uma vez reconhecidos, f‌icando registados todos os percursos
que fazemos.
Quando vamos ao supermercado ou a qualquer tipo de loja, são re-
gistados todos os produtos que consumimos, permitindo a posterior ela-
boração de perf‌is de consumo. Mais ainda, oferecemos os nossos dados
pessoais para a adesão a cartões de cliente.
Os meios de pagamento electrónicos, como os cartões de débito e cré-
dito, também deixam um rasto acerca das nossas preferências, guardadas
pelas instituições f‌inanceiras.
Nos serviços públicos (serviços de f‌inanças, segurança social e saúde),
somos identif‌icados numericamente, sendo elaboradas gigantescas bases
de dados onde constam informações capazes de reconstituírem, com
bastante detalhe, a nossa vida, desde o nascimento.
No nosso emprego, somos compelidos a fornecer todos os nossos dados
pessoais, incluindo dados sensíveis como dados de saúde, convicções
religiosas e políticas ou registo criminal. Além disso, somos controlados
pelo instrumento de entrada vulgarmente chamado de ponto e somos
3 World Wide Web, que contou com o contributo decisivo de Tim Berners-Lee, cientista de computadores,
então ao serviço do CERN (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear).
Pedro Miguel Alves Ribeiro Correia
Inês Oliveira Andrade de Jesus

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