A hipossuficiência do litigante trabalhista, consumerista, de família e seus efeitos jurídico-processuais

AutorCamila Almeida Peixoto Batista de Oliveira - Júlio César de Paula Guimarães Baía
Ocupação do AutorMestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade de Direito da UFMG, Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. - Mestrando em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade de Direito da UFMG, Especialista em Direito Civil pela Fundação Getúlio Vargas, Advogado, professor Universitário.
Páginas221-230

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1. Introdução

Desde os primórdios, despontam diferenças nos contextos sociais. Tanto nas relações parentais como nas de trocas, sempre existiu a predominância de uns sobre outros, sobretudo pela força e habilidade. O tempo passou, evoluções sucederam-se, mas a essência inicial permaneceu e intensificou-se: a pluralidade impera no mundo pós-moderno. A igualdade de tratamento aos pares sociais é incompatível com a contemporaneidade. E, com o intuito de promover a harmonia e paz nas relações humanas, ao Estado Democrático de Direito impõe-se, cada vez mais, a adoção de políticas de respeito à diversidade, que tratem desigualmente os desiguais na exata medida de suas desigualdades.

No âmbito jurídico, medidas despontam a todo momento, direcionando-se direitos materiais e processuais à tentativa de equalização de poderes. Independentemente do tipo de hipossuficiência (econômica, psicológica, informacional ou qualquer outra), volta-se o Estado à busca da igualdade subs-tancial, concedendo aos mais vulneráveis prerrogativas jurídicas que minimizem sua desigualdade fática em suas relações.

Isso posto, proceder-se-á, no presente artigo, à análise interdisciplinar do contexto jurídico em que se insere o litigante hipossuficiente, levando-se em conta algumas tutelas de direito processual imprescindíveis à sociedade plural do país. Ademais, suas condições socioeconômicas também serão vislumbradas, assim como o papel do magistrado na consecução da justiça.

2. Breve contextualização histórica

Nas sociedades arcaicas, baseavam-se os procedimentos judiciais nas religiões, assemelhando-se a rituais místicos e jogos de azar. Em seguida, surgiram os sistemas germânico e romano que, ressalvadas as peculiaridades de cada um, já impregnavam o processo com o seu principal elemento: a lógica.

Durante a Idade Média, patente foi a diferença de tratamento dispensado aos ricos e aos pobres quanto à aplicação de sanções, sobretudo de natureza penal, prevalecendo aos primeiros a imposição de penas menos severas. Neste período, prevalecia o processo penal inquisitivo, fortemente influenciado pela Igreja Católica, inexistindo contraditório, regras de igualdade e liberdade. Ademais, desenvolvia-se de forma secreta, a fim de permitir ao juiz a utilização de todos os meios necessários para obter a então desejada confissão, tratando-se o réu como objeto de direitos.

Com o advento do Liberalismo, modificou-se totalmente o poder dado ao magistrado, passando a ser mero executor do comando legal, alheio aos

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valores sociais e aos preceitos fundamentais daquele momento. Despontava, assim, a preconizada neutralidade judicial que, neste primeiro momento, gerou aberrações e injustiças.

Finalmente, buscou o Estado Social a correção de tais distorções, passando a exigir igualdade real e não apenas formal no que tange às questões sociojurídicas. Neste contexto, invoca-se a grande importância das regras de direito material e processual para que tal fim seja alcançado. Ademais, imperiosa é a postura judicial assecuratória de proteção aos mais vulneráveis, a partir da captação das peculiaridades do caso e de todos os tipos de lides que o permeiam.

3. O litigante hipossuficiente no âmbito trabalhista

Em todos os contextos históricos, o trabalhador sempre foi o hipossuficiente em sua relação jurídica com o empregador. Tal fato justifica-se pelo conflito entre capital e trabalho, inerente a qualquer conjuntura socioeconômica, sobretudo no sistema capitalista de produção, em que persiste a hegemonia constante do primeiro.

A Revolução Industrial acarretou profundas modificações no bojo das relações sociais e laborais. A utilização de máquinas levou ao desemprego em massa e a exploração daqueles que permaneceram em seus postos de trabalho acirrava-se a cada dia. O incremento da produção proporcionou um grande lucro e a consequente concentração de riquezas nas mãos de poucos, acarretando também a depauperação generalizada da classe obreira.

A aglomeração dos trabalhadores em ambientes fabris propiciou a consciência da similitude de seus interesses e a sua união, resultando de sua insatisfação movimentos reivindicatórios em prol de melhores condições de labor. Frente ao império do economicamente mais forte, a greve era um dos instrumentos de luta e de pressão, pelos potenciais prejuízos decorrentes de uma paralisação da produção. Caracterizava-se o Estado Liberal da época pela abstenção quanto às relações privadas, gênero ao qual pertencem as trabalhistas, vigorando contratos e normas fundadas na fictícia premissa de igualdade jurídica entre operários e empregadores. Mas, com o passar do tempo, tal alheamento foi abandona- do, em face da percepção dos prejuízos causados à ordem nacional e à produção pelos movimentos sociais cada vez mais frequentes (greves, boicotes e sabotagens).

Frente ao aumento das lides laborais, à perturbação interna e ao empobrecimento da nação acarretado pelas paralisações grevistas, passou o Estado a intervir nesses conflitos, ditando normas voltadas à sua pacificação. Nascia, então, antes mesmo do Direito material Trabalhista, o Processo do Trabalho (como sequência de atos ordenados)1, e também os primeiros órgãos destinados a pacificá-los. Os ancestrais da atual Justiça Laboral lidaram de formas diversas com relação aos conflitos, sofrendo tais trâmites uma evolução ao longo dos anos. Concomitantemente, consolidava-se um direito material específico, destinado a tutelar a parte mais vulnerável de uma relação cada vez mais hegemônica no contexto social: o Direito do Trabalho.

Com tal dinâmica histórica, as normas de direito material e processual do trabalho desenvolveram-se no sentido da efetiva proteção ao hipossuficiente, seja na esfera contratual, seja no âmbito processual. Afinal, frente à desigualdade econômica entre as partes, o seu tratamento desigual é o único meio legítimo de se alcançar o equilíbrio da relação obreira.

O princípio orientador de todo o Direito do Trabalho é o da proteção, voltado à tutela de um dos polos do conflito e ao alcance de "uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes".2 Ele explicita a estrutura interior do ramo jurídico laboral que, por meio de regras, institutos, princípios e presunções próprias, engendra uma teia de proteção ao hipossuficiente na relação empregatícia3.

No que toca ao direito material, houve a criação de normas cogentes, inafastáveis pela vontade dos contratantes, em busca da redução de suas desigualdades fáticas e socioeconômicas, da melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores e da distribuição mais justa de poder e riqueza na sociedade4.

As regras constantes no capítulo V da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) relativas à segurança e medicina do trabalho são exemplos de dispositivos impassíveis de qualquer relativização. Deste modo, criou o legislador mecanismos assecuratórios da

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dignidade humana do trabalhador no desempenho de suas atividades laborativas.

Entretanto, as normas de direito material não são o único expoente e fonte de proteção laboral no ordenamento jurídico pátrio. Também dispositivos referentes à matéria processual "asseguram a concretização do direito, por meio de sua tutela jurisdicional efetiva5". Afinal, o distanciamento entre a verdade real e a formal pode e deve ser diminuído através de suas regras.

Primeiramente, destaca-se o jus postulandi, previsto pelo art. 791 da CLT, que consagra a possibili-dade de o próprio ofendido recorrer pessoalmente ao Poder Judiciário sem assistência advocatícia. Patente se mostra seu grande avanço no tocante à proteção do litigante hipossuficiente: seu acesso à justiça é facilitado, sendo desnecessário que utilize seus parcos recursos na contratação de um advogado.

Outra norma processual relevante é a gratuidade judiciária, prevista pela Lei n. 1.060/50, que permite a utilização da estrutura jurisdicional sem que o empregado necessitado arque com o pagamento de qualquer taxa ou despesa judiciária. Para tanto, basta que informe nos autos sua insuficiência de condições para o custeio das despesas processuais sem prejuízo do seu sustento e de sua família. Tal declaração, nos termos da citada lei, tem presunção de veracidade expressamente consagrada em seu art. 4º, § 1º.

Destacam-se também as diversas presunções existentes em prol do empregado, lastreadas em sua condição de hipossuficiência processual que dificulta sua produção probatória. Elas permitem o equilíbrio do processo, impedindo ao empregador a utilização de seu poder econômico e coercitivo para obter benefícios no trâmite da demanda. Deste modo, relativiza-se a regra pela qual a prova das alegações incumbe à parte que as fizer6, fundamentando-se sua interpretação não literal, sobretudo, no princípio da proteção. Ressalta-se a presunção de que toda prestação de trabalho é subordinada, ou seja, configuradora de uma verdadeira relação de emprego, cabendo ao empregador que não nega tal prática o ônus de demonstrar a ausência dos elementos fático-jurídicos ensejadores do vínculo empregatício.7

Sendo o tempo absolutamente relevante no que tange à concretização dos direitos em litígio, notam-se no ordenamento jurídico pátrio diversas disposições que objetivam alcançar a efetividade da lide trabalhista. Afinal, segundo Luiz Guilherme Marinoni, a demora processual é tanto mais insuportável quanto menos resistente economicamente é a parte, o que vem agravar a quase que insuperável desigualdade substancial no procedimento.8 Tutelas jurisdicionais diferenciadas foram criadas visando à agilidade do processo e efetividade do Direito material Laboral. Além do procedimento sumário, dire-cionado obrigatoriamente às causas individuais de valor até dois...

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