Análise crítica dos princípios do contraditório e da oralidade

AutorBianca de Oliveira Farias
CargoMestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Processual Civil da Universidade Federal Fluminense. Advogada.
Páginas89-108

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1- Introdução e delimitação do tema:

Vivemos, atualmente, no denominado Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil. Ainda que possuidor de imperfeições, este sistema consagra a dialética e destaca conceitos e valores fundamentais em nossa sociedade, tais como o princípio da igualdade e a tutela das liberdades de culto e de expressão nas suas mais variadas formas.1

Como é cediço, o Estado, no exercício de sua soberania, desempenha, basicamente três funções: administrativa, legislativa e jurisdicional2. A última, também denominada de jurisdição, guarda estreita pertinência com o tema ora estudado. Diversas são as conceituações atribuídas a essa função no intuito de melhor defini-la. Assim, Chiovenda define a jurisdição como:

"função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente, efetiva".3

Outra importante definição4 é apontada por Carnelutti, que assim se expressa: "a jurisdição é a função de busca da justa composição da lide".5

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A doutrina brasileira, em sua maioria, mescla as definições de jurisdição apresentadas pelos dois juristas supramencionados. Em que pese a opinião de doutrinadores de renome, como Ada Pellegrini Grinover, Vicente Greco Filho, Moacyr Amaral Santos e Humberto Theodoro Júnior6, pensamos que as definições referidas não se complementam, mas, ao contrário, são antagônicas, posto que denotam concepções diferentes do ordenamento jurídico. A primeira de natureza constitutiva e a segunda declaratória.

Ao invocar para si o monopólio da função jurisdicional, visou o Estado coibir a chamada "justiça de mãos-próprias".7 Mas, nem sempre foi assim8.

Em primeiro momento, vigorou a chamada autodefesa ou autotutela. Era a época da vingança privada, da justiça de mãos-próprias. Não havia um juiz distinto das partes e ocorria a imposição da decisão por uma das partes à outra.

Parece evidente a incompatibilidade desse sistema com os postulados do Estado Democrático de Direito, onde o bem-estar social e os interesses da coletividade devem, invariavelmente, estar sobrepostos ao interesse e à tutela dos interesses individuais. Dessa forma, apenas em caráter excepcional continuamos a admitir a autotutela como forma de composição dos litígios, o que se dá quando ocorrem casos de legítima defesa e do chamado desforço possessório.

Momento seguinte, passa a ser adotada a autocomposição como forma de solução de litígios. Buscava-se, por meio desta, a solução dos conflitos por meio da desistência, renúncia ou transação. Sem dúvida, tal método é infinitamente superior ao anteriormente adotado, de caráter marcantemente desagregador e plenamente incompatível com os preceitos orientadores da vida em sociedade.

Contudo, não obstante a evolução ocorrida, problemas continuavam a existir. Isto porque, a parcialidade continuava a caracterizar as decisões e o que freqüentemente se observava era o predomínio do mais forte em conseqüente detrimento do hipossuficiente. É a partir daí, que se percebe a necessidade de atribuir-se o poder decisório a um agente eqüidistante das partes, capaz de conferir ao caso concreto a justa decisão, posto que dotado da devida neutralidade. Transfere-se, então, ao Estado o exercício da função jurisdicional.

Acreditava-se que, com tal atitude, todos os problemas relativos à solução dos litígios estariam definitivamente resolvidos, pois os agentes estatais se incumbiriam de aplicar a lei aos casos concretos com imparcialidade sem, contudo, perceber-se que, nem os diplomas legais eram capazes de prever soluções para todos os problemas porventura existentes, nem tampouco possuíam tais agentes os instrumentos processuais necessários para conferir às lides a rápida e justa solução que se reclamava.Tais limitações culminam no panorama que hoje se vislumbra em que o Estado, ePage 91conseqüentemente a função jurisdicional, vêm sendo muito criticados. A globalização, que muitos pensavam ser o prenúncio de imenso progresso, a constante opressão de classes menos favorecidas e a constante diminuição dos direitos trabalhistas contribuem para aumentar a crise instalada.

Logicamente, há um nítido reflexo dessa situação na prestação jurisdicional, que se torna morosa e comprometida com ideais outros que não os da justiça social.

Dessa análise, pode-se inferir que o processo, enquanto instrumento de atuação estatal da administração da justiça, também está em crise. O professor Leonardo Greco, irretocavelmente assim se manifesta:

"Se o Estado e a Justiça estão em crise, conseqüentemente o Processo, como instrumento de solução de conflitos e de administração estatal de interesses privados, também reflete essa mesma insatisfação, pois o sistema jurídico e os ordenamentos positivos, engedrados pela sua teoria geral em mais de cem anos, tornaram-se incapazes de atender às exigências de rapidez e eficiência na entrega da prestação jurisdicional e de instaurar um verdadeiro diálogo humano capaz de satisfazer às aspirações democráticas infundidas na consciência jurídica dos cidadãos do nosso tempo".9

Nesse diapasão, surge a necessidade dos juristas repensarem os fundamentos constitutivos do processo na tentativa de atribuir aos princípios processuais novos valores capazes de lhes assegurar plena eficácia e, por conseguinte, melhorar a qualidade da prestação jurisdicional.

Feito esse breve intróito passo à delimitação do tema.

O presente trabalho pretende tratar dos princípios do contraditório e da oralidade destacando a relevância de sua correta aplicação para a obtenção de uma prestação jurisdicional mais eficiente.

Introduziremos na abordagem questão acerca das matérias que podem ser conhecidas de ofício pelo juiz tecendo críticas ao conservadorismo que por vezes se manifesta no nosso sistema e também em sistemas alienígenas. Criticaremos, também, a subutilização desses princípios, mormente ao princípio da oralidade, sem qualquer aplicação no direito brasileiro no bojo de processos de execução e em grau recursal.

Conferimos maior destaque aos aspectos que nos parecem, até mesmo pelo caráter polêmico que possuem, mais relevantes.

Por fim, destacamos que o estudo dos princípios do contraditório e da oralidade será feito tomandose por base o tratamento conferido pelo direito brasileiro e italiano à matéria.

A escolha justifica-se frente aos inúmeros trabalhos desenvolvidos em ambos os países em torno do tema, o que denota a grande relevância dada ao assunto nos citados sistemas.

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2- Considerações acerca do princípio da bilateralidade da audiência ou do contraditório:

Os princípios processuais constituem um conjunto de idéias, inter-relacionadas e interdependentes, que expressam a visão que um povo, como comunidade jurídica, tem do processo.

Sob esse aspecto, foi muito feliz a Constituição brasileira de 1988, de que se extraem, como princípios fundamentais do processo, o da inafastabilidade do Poder Judiciário, do juiz natural, da imparcialidade, da ação, do contraditório, da publicidade, da licitude das provas, da persuasão racional, do devido processo legal, da representação por advogado e do controle hierárquico.

A Carta Magna contemplou as garantias do contraditório e da ampla defesa num só dispositivo (art. 5º, inciso LV), sem restringi-las ao processo judicial, daí porque aplica-se aos processos de qualquer natureza (judicial ou administrativo).

O processo deve assegurar igualdade de oportunidades para as partes se manifestarem na audiência.

Como ensina o festejado professor Vicente Greco Filho, o contraditório se efetiva na medida em que atende aos seguintes elementos:

1)o conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação;

2)a oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial;

3)a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário;

4)a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar;

5)a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável.

Vê-se que o contraditório assegura a oportunidade de participação ativa do réu em sua defesa. Se a parte abre mão dessa garantia legal, por inércia ou omissão, sofre as conseqüências dessa decisão.

Pode-se dizer que o contraditório, como decorrência do princípio da paridade das partes, significa dar as mesmas oportunidades para as partes, como criado no direito alemão Chancengleichheit, e também os mesmos instrumentos processuais (Waffengleichheit), o que exige uma vigilância constante do juiz sobre os processos.

Porém ressalte-se que essa igualdade de armas não significa paridade absoluta, mas sim na medida em que as partes estiverem diante da mesma realidade em igualdade de situações processuais.

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Podemos encontrar expressões do princípio do contraditório no Código de Processo Civil, entre outros, os dispositivos relativos à citação e resposta do réu, o dever do juiz de assegurar a igualdade das partes (artigo 125, I), as normas relativas à participação e conhecimento das partes quanto às provas etc.

Destaque-se que, quanto aos elementos elencados pelo professor Greco, os itens 1) e 3) atendem ao princípio da ampla defesa assegurado ao réu pelo legislador pátrio e...

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