Revisão da doutrina dos limites ao poder de reforma na Constituição de 1988 (reflexões a partir do estudo de dois casos)

AutorFábio Carvalho Leite
CargoProfessor de Direito Constitucional da PUC-Rio. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio) e Doutorando em Direito Público (UERJ).
Páginas87-151

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1. Introdução

A doutrina constitucional brasileira, com alguma variação na forma, tem revelado um certo consenso a respeito de alguns dos (assim denominados) limites ao poder de reforma constitucional, tanto em sede de teoria da Constituição como em relação aos limites previstos no Texto de 1988. Assim, em devida homenagem à monografia de NELSON DE SOUZA SAMPAIO, O Poder de reforma constitucional1, de 1954, aponta-se comumente três espécies de limites ao poder constituinte derivado, a saber: limites temporais, circunstanciais e materiais – que por seu turno se subdividem em expressos e implícitos. Dentre estes, segundo boa parte da doutrina, a Constituição de 1988 teria previsto apenas os limites circunstanciais e os materiais (expressos e implícitos), mas não os limites temporais, eis que, como afirma categoricamente JOSÉ AFONSO DA SILVA, na história constitucional brasileira “só a Constituição do Império estabeleceu esse tipo de limitação” 2.

Desse modo, admitindo-se que a Constituição brasileira de 1988 adotou apenas os limites circunstanciais – vedando a realização da alteração do texto constitucional em casos de estado de emergência, estadoPage 88de sítio ou intervenção federal –, os limites materiais expressos – vedando a adoção de emendas tendentes a abolir a forma federativa de estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais – e os limites materiais implícitos – que aborda as matérias concernentes ao titular do poder constituinte, ao titular do poder reformador e ao processo de emenda constitucional – deveria se admitir também – e como decorrência lógica – que qualquer emenda será necessariamente constitucional desde que não desrespeite qualquer destes limites – e apenas estes. A verificação da constitucionalidade de uma emenda constitucional, então, deveria limitar-se tão somente à adequação a este rol de limites constitucionais ao poder de reforma.

Nesse sentido, a emenda constitucional n.º 2/92, que alterou o art. 2º do ADCT, antecipando de 7 de setembro de 1993 para 21 de abril do mesmo ano a data em que ocorreria o plebiscito onde o povo decidiria a respeito da forma (monarquia constitucional ou república) e do sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), não deveria levantar qualquer dúvida acerca da sua legitimidade constitucional, pois não violou limite temporal, que, segundo a melhor doutrina, ao longo da história constitucional apenas a Constituição do Império adotou, nem limite circunstancial, uma vez que não havia sido decretada intervenção federal, nem estado de sítio ou estado de defesa ao tempo de sua aprovação, nem limite material expresso, eis que compatível com as matérias elencadas no §4º do art. 60 do texto constitucional, nem sequer limite material implícito, pois não trata de matéria concernente ao titular do poder constituinte, ou ao titular do poder reformador ou mesmo ao processo de reforma.

Isto nada obstante, a EC n.º 2/92 foi objeto de nada menos que três ação diretas de inconstitucionalidade (ADIN’s n.º 829, 830 e 833), devendo-se ainda frisar que a inconstitucionalidade da referida emenda foi acolhida por três Ministros do STF, e que – o que aqui se revela ainda mais importante – o fizeram por distintos fundamentos.

Outro exemplo que parece justificar a investigação a respeito do caráter exaustivo do rol de limites ao poder de reforma apresentados pela doutrina – exemplo que cresce em importância à medida que é retomado o debate – seria o de uma hipotética emenda constitucional, aprovada nos termos do art. 60 da Constituição, que adotasse o sistema parlamentar de governo, em substituição ao sistema presidencialista, sem, no entanto, submeter previamente esta proposta a novo plebiscito.

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Esta emenda constitucional também não estaria transpondo os limites consagrados pela doutrina, pois não violaria limite temporal, nem circunstancial, nem material expresso ou implícito, ao menos não nos termos ali colocados. Ainda assim, não seria difícil defender a inconstitucionalidade desta emenda, seja por se entender que apenas o povo teria competência para rever suas próprias decisões, seja até mesmo por se entender que, uma vez feita a consulta prevista no ADCT, tanto a forma como o sistema de governo escolhidos passaram a integrar o rol de limites materiais ao poder de reforma.

O presente trabalho pretende, a partir da análise destas duas situações que sugerem que talvez a realidade não esteja se encaixando perfeitamente na teoria, questionar a suficiência dos limites ao poder de reforma constitucional apresentados – ou ao menos da forma como são apresentados – pela doutrina constitucionalista brasileira.

2. Análise crítica da doutrina brasileira
2. 1 Os limites ao poder de reforma constitucional, segundo Nelson de Souza Sampaio

A doutrina constitucional brasileira, em geral, faz expressa referência, em suas considerações sobre os limites ao poder de reforma, à conhecida obra de NELSON DE SOUZA SAMPAIO. Embora publicada em 1954, a obra ainda exerce grande influência na abordagem doutrinária aos limites ao poder de reforma previstos na Constituição brasileira de 1988, o que justifica o início de uma abordagem doutrinária crítica a partir da análise da citada obra.

O autor inicia seu estudo sobre “limitações do poder reformador” (cap. IV) afirmando que os limites fixados pelo legislador constituinte para a reforma constitucional podem referir-se ao tempo, ao objeto ou ao processo, classificando assim as limitações do poder reformador em temporais, materiais e formais3.

O conceito de limitação temporal, segundo esta classificação, é abrangente, enquadrando assim (1) dispositivos que expressamente impedem qualquer alteração no texto constitucional durante certo tempo, ou seja, desde a entrada em vigor do texto constitucional até uma determinada data; (2) dispositivos que estabelecem realizações periódicas de revisão constitucional – não se enquadrando aqui as constituições que, ao lado das revisões periódicas, permitem também alterações constitu-Page 90cionais, a partir de um processo mais rigoroso, a qualquer tempo, desde que o façam expressamente; (3) dispositivos que impedem a realização de mudança no texto constitucional durante momentos de exceção institucional, como a vigência do estado de sítio por exemplo, visando assim assegurar que “as deliberações sobre uma reforma constitucional sejam tomadas num ambiente de liberdade, que evite as imposições da força ou de interesses unilaterais”.4

Como se pode verificar, embora estas três situações estejam enquadradas no conceito de limitação temporal conforme definido por NELSON DE SOUZA SAMPAIO, parece possível identificar duas razões bastante distintas a justificar o estabelecimento da limitação temporal nos dois primeiros casos, de um lado, e de outro, na terceira situação. De fato, tanto o estabelecimento de um prazo contado da entrada em vigor da Constituição em que o texto não pode sofrer alterações, quanto a vedação de modificação constitucional no interregno de reformas constitucionais, em caso de revisões periódicas, têm o inequívoco intuito de assegurar um prazo que se julgue razoável para a consolidação das instituições e do projeto político do texto constitucional – tal como estabelecido pelo poder constituinte originário, no primeiro caso, ou tal como reformado pelo poder constituinte derivado, no segundo.

Já a terceira hipótese de limitação temporal não tem por objetivo a consolidação de nenhum dispositivo constitucional, mas apenas visa assegurar que o processo transcorra em condições institucionais regulares; tutela antes o processo de reforma do que propriamente o projeto político-constitucional.

De todo modo, prossegue o autor:

Em nosso modo de ver, todas essas limitações temporais da revisão constitucional, sejam permanentes ou transitórias, não podem ser afastadas através de reforma da constituição, porque, do contrário, teríamos conferido ao poder reformador a faculdade de libertar-se das condições de tempo do seu exercício, impostas pelo legislador constituinte.5

Aqui, o Autor simplesmente constata que as normas que estabelecem as limitações temporais são elas próprias limitações ao poder reformador, o que, como se verá, é válido também para limitações dePage 91qualquer outra espécie. Este reconhecimento, no entanto, deixará de ser óbvio quando se indaga que “espécie” de limitação as normas que estabelecem limites representam. Ou seja, admite-se sem maiores discussões que os limites impostos ao poder de reforma não podem eles próprios serem “suprimidos”, mas não parece tão certo afirmar que (ao menos os limites temporais) não podem ser “alterados”. Segundo NELSON SAMPAIO:

nenhuma reforma da Constituição do Império brasileiro poderia alterar para menos ou revogar o prazo de quatro anos, a contar do seu juramento, para admissibilidade da revisão constitucional. Proibições dessa ordem estabelecem um período de fixidez constitucional, que não pode ser abolido ou encurtado pelo poder reformador, da mesma sorte que não se pode adiar o início da rigidez da constituição, por ela previsto, prorrogando a competência do legislativo ordinário para realizar reformas constitucionais (...). O inverso, entretanto, nada tem de inadmissível. O poder reformador poderá prever ou estender o prazo de irreformabilidade da constituição, pois, em tal hipótese, estaria ele próprio criando ou tornando mais rigorosas as condições de tempo para o seu exercício.6

E, a seguir, acrescenta:

O mesmo...

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