Limites à interpretação do direito e a imunidade dos templos religiosos

AutorRosana Pasinato
CargoMestranda em Direito Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP - COGEAE. Advogada em São Paulo
Páginas339-361

Page 339

I - Introdução

A sociedade contemporânea, na qual o sistema1 normativo do Direito está imerso, caracteriza-se por sua complexidade,2 ou seja, apresenta ao homem "uma multiplicidade de possíveis experiências e ações, em contraposição ao seu limitado potencial em termos de percepção, assimilação de informação, e ação atual e cons-ciente".3 Inexiste uma moral única, a exemplo das sociedades pré-modernas, com a qual os conflitos possam ser definitivamente decididos. O que se verifica são múltiplas expectativas de comportamento, conforme múltiplos são os valores e interesses que as fundamentam.4

Neste contexto, onde o que prevalece é o dissenso,5 cabe ao sistema do Direito reduzir complexidades criando expectativas normativas de estabilização de condutas. Por sua vez, tais expectativas normativas se manifestam em textos que necessitam de interpretação, dada a sua inerente e natural "vagueza"6 e "ambigüidade",7 como

Page 340

um dos elementos para a concretização da norma jurídica.8

O problema da "vagueza" e da "ambigüidade" não está adstrito aos limites do texto normativo, isto é, não é somente um problema de linguagem do direito posto, mas de concretização da norma. Essa, por sua vez, não é simples resultado da interpretação dos enunciados e de operações lógicas de subsunção e implicação (mundo do dever-ser), mas leva em consideração aspectos do mundo do ser. Interpreta-se o texto para solucionar casos, sejam eles existentes ou fictícios.9 Não queremos com essa afirmação negar a autonomia do direito enquanto sistema, mas apenas enfatizar que o mundo do dever-ser é sensível ao mundo do ser, pois como afirma Lourival Vilanova,10 "a hipótese ou o pressuposto é a via aberta à entrada do fáctico no interior do universo-do-Direito".

Assim sendo, a própria interpretação do caso também padece de "vagueza" e de "ambiguidade", o que é decorrência lógica da constituição da realidade pelo sujeito cognoscente por intermédio da linguagem. Conforme nos ensina Paulo de Bar-ros Carvalho11 "aquilo que chamamos de 'realidade', é dado bruto, que se torna real apenas no contexto da língua, única res-ponsável pelo seu aparecimento". Nas palavras de Vilém Flusser:12 "a língua é, forma, cria e propaga a realidade".

Somando-se à complexidade da sociedade contemporânea, com sua infinitu-de de valores e expectativas, a necessidade de interpretação dos textos jurídicos e dos fatos, com vistas à solução de casos (concretos ou fictícios), para que se alcance a normatividade, verifica-se facilmente que a interpretação e seus limites se torna tema problemático.

Se adicionarmos ainda, o fato de que essa regulação de condutas pretende ocorrer em países periféricos, nos quais não há suficiente diferenciação entre o sistema do Direito e o sistema político,13 além de problemático, se torna essencial à Dogmática14 discutir os limites da atividade hermenêutica. Não queremos, contudo, afirmar que inexiste, nos países periféricos, dentre os quais incluímos o Brasil, qualquer diferenciação entre o sistema do direito e os demais sistemas. Porém, não raras vezes, notamos uma falta de tratamento jurídico às questões apresentadas ao Poder Judiciário, nas quais, as respectivas soluções se apresentam estranhas à pragmática jurídica.

Page 341

É nesse cenário, que a Constituição Federal em seu art. 150, VI, "b", institui a imunidade tributária com relação aos impostos, dos templos de qualquer culto. Entendemos que a imunidade, por impedir o exercício da competência dos entes tribu-tantes em face de determinadas instituições, expressa a importância atribuída pela sociedade às funções por elas exercidas, notoriamente, no caso dos templos de qualquer culto, como espaço de expressão e exercício da liberdade religiosa.15

Todavia, não se conhece uma definição expressa nos textos de lei que esclareça o que venha a ser um templo de qualquer culto, que possa em função disso, ser agraciado com a imunidade. Ainda que tal definição existisse, em nossa opinião, seria necessariamente, como texto, interpretada para fins de aplicação da imunidade.

Portanto, o problema que queremos abordar é justamente a possibilidade de conceituar-se o que seria templo de qualquer culto para fins de aplicação da imunidade. Dito de outro modo, queremos entender se haveria limites à interpretação desse conceito, que dado seu valor, foi agraciado com a imunidade tributária dos impostos.

Para enfrentarmos o problema, tomamos como referência os pressupostos teóricos que a seguir passamos a tratar.

II - Pressupostos teóricos
2. 1 O Direito como sistema

Conforme acima mencionamos (nota 1) adotamos a definição de sistema exposta por Marcelo Neves,16 segundo o qual, apesar da plurivocidade do termo, é possível extrair-se um significado de base.

"Nesta orientação, define-se o sistema como conjunto de elementos (partes) que entram em relação formando um todo unitário".17

Classificamos o sistema do Direito como um sistema nomoempírico18 prescri-tivo, que pelas suas características possui fechamento sintático, bem como, abertura semântica e pragmática,19 haja vista, o relacionamento dialético que possui com o sistema social.

O que queremos afirmar é que, do ponto de vista sintático, as normas, enquanto sentido que construímos a partir dos enunciados, possuem estrutura lógica peculiar, composta por antecedente, que descreve fato de possível ocorrência e que se entrelaça a um conseqüente, por intermédio da imputação do modal deôntico (dever-ser), obrigando, permitindo ou proibindo condutas.20

Há também, uma forma própria de relacionamento entre estas estruturas lógicas, que se armam de forma hierarquizada. No topo, temos a Constituição Federal, como fundamento de validade das demais normas do sistema, de natureza geral e abstrata, geral e concreta, individual e abs-

Page 342

trata e individual e concreta. Na base dessa estrutura, temos, justamente, as normas individuais e concretas que surgem, do ponto de vista exclusivamente lógico, pela operação de subsunção dos fatos às normas.

Além desta estrutura sintática, o sistema do Direito, por estar dirigido à regulação de condutas intersubjetivas,21 possui abertura semântica e pragmática, sem as quais não atingiria sua finalidade. Dito de outra forma, o Direito, enquanto sistema, não está isolado do sistema social, mas dele faz parte. Há uma dialética com o sistema social. Ao mesmo tempo, que recebe dados de outros sistemas sociais, após o devido tratamento em linguagem jurídica, os devolve à sociedade, na forma de regulação de condutas.

No entanto, o sistema do Direito é complexo, visto que as normas são construídas não somente em função dos textos normativos, mas têm componentes ideoló-gicos/valorativos do intérprete, entendido este como ser histórico, e componentes fá-ticos.22

Além disso, há de se considerar que a autorreferência do sistema do Direito não está fundamentada exclusivamente de forma hierárquica, conforme acima descrito, mas se completa com um modelo circular, no qual, outros elementos do sistema, além dos enunciados normativos, como a Dog-mática e a jurisprudência colaboram na produção normativa.23

Portanto, o aspecto formal-normativo do Direito, que chamaremos, a partir de agora, de ordenamento24 é uma das dimensões do sistema do Direito, que na sua in-tegralidade envolve os componentes ideológicos e fáticos do fenômeno jurídico e, além disso, engloba outras dimensões, como os órgãos de decisão,25 a Dogmática e a jurisprudência. Assim sendo, Lourival Vilanova26 nos ensina que "o conhecimento jurídico dogmático insere-se no interior do sistema jurídico total. A ciência jurídica não é um setor ilhado, como se fora propriedade dos teóricos do Direito. Está permeando a atividades dos advogados e dos juízes, como saber teorético, projetan-do-se em saber instrumental visando conhecer, para, no final, aplicar normas".

O conceito de sistema do Direito, conforme procuramos apenas aclarar, já que o assunto merece pesquisa aprofundada, o que é incompatível com as características deste trabalho, nos parece fundamental para vislumbrarmos limites à interpretação da norma jurídica, pois nos traz a ideia de diferenciação entre o Direito e a sociedade e enfatiza que diferenciação não é o mesmo que isolamento.

Page 343

Dessa maneira, o intérprete, ao aplicar a imunidade aos templos religiosos deverá observar, como limites de sua ativi-dade, a estrutura autônoma do Direito, enquanto sistema complexo e diferenciado de seu ordenamento, como uma de suas dimensões, e seu relacionamento com a sociedade.

2. 2 A diferença entre texto e norma

Partimos da compreensão que o Direito é um sistema nomoempírico27 pres-critivo de condutas, e como tal, é composto de atos comunicativos constituídos de linguagem.

Tais atos comunicativos se tornam intersubjetivos por intermédio de textos, que como signos, necessitam de construção de sentido, o que nos leva a outro pressuposto teórico que adotamos neste trabalho, consistente na diferença entre texto normativo e norma jurídica. Entendemos que o ordenamento jurídico é composto por enunciados normativos que são pontos de partida para a construção das normas jurídicas que atribuem o sentido ao enunciado.

Do ponto de vista formal, o texto normativo corresponde ao enunciado e a norma a uma...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT