Limites constitucionais para a alteração das competências tributárias

AutorBruno Maciel dos Santos
CargoProcurador do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Tributário pela PUC/SP. Mestrando em Direito Tributário pela USP.
Páginas140-153

Page 140

1. Introdução

A Constituição estabelece em seu art. 1o que o Brasil é uma República Federativa, formada pela união indissolúvel da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Assim, fica evidente a forma de governo (república) e de Estado (Estado federado) escolhidos pela Assembleia Constituinte de 1988.

Tal configuração foi elevada pelo poder constituinte originário à condição de decisão política fundamental, passando a compor o núcleo intangível da Constituição, estando, desse modo, protegida de qualquer proposta intentada pelo constituinte derivado tendente à sua abolição (art. 60, § 4o).

Concentrando a atenção no Estado federal, verifica-se que este apresenta como características essenciais: (i) a autonomia federativa, formada pela auto-organização, autogoverno e autoadministração; (ii) a re-partição de competência, consubstanciada nas parcelas de competências políticas exercitáveis por direito próprio, podendo ser classificadas em político-administrati-vas, legislativas e tributárias; e (iii) a participação na formação da vontade nacional.1

À luz dessas considerações, tem-se que o Brasil adotou a forma federativa de Estado como decisão política fundamental, a qual, por ser cláusula pétrea, não poderá ser abolida, sendo assegurado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a autonomia e a repartição de competências.

Partindo dessa premissa, o presente estudo focará especificamente nas competências tributárias outorgadas aos entes políticos que compõem a federação brasilei-

Page 141

ra, buscando traçar os limites impostos pela Constituição da República à edição de emendas constitucionais que tenham por finalidade a sua alteração.

Isso porque a opção da Constituição da República por um sistema rígido de repartição de competências tributárias foi a solução encontrada para garantir a cada pessoa jurídica de direito público o montante de ingressos necessários à manutenção de sua independência assegurada, de resto, pelo sistema federativo.2

Não serão enfrentadas nesta oportunidade questões referentes aos conflitos materiais que possam surgir do exercício da competência tributária pelos entes tribu-tantes. Centrar-se-á o foco na verificação da constitucionalidade das alterações que possam ser promovidas pelo poder constituinte derivado nas normas de outorga de competências tributárias.

Por fim, ainda a título de introdução e delimitação do objeto de estudo, ressalta-se que a posição que tomamos não é incontestada pela doutrina nacional, motivo pelo qual se fez referência às opiniões divergentes nos pontos apresentados.

2. Competência tributária
2. 1 Conceito

Competência tributária é a outorga de poderes específicos e limitados aos entes federados para que estes possam inovar a ordem jurídica com a criação de tributos.

Roque Carrazza define a competência tributária como "Normas que autorizam os Legislativos da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal a criarem, in abstrato, tributos, bem como a estabelecerem o modo de lançá-los e arrecadá-los, impondo a observância de vá-rios postulados que garantam os direitos do contribuinte".3

Nessa linha também é a opinião de Paulo de Barros Carvalho, para quem a competência tributária "é a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas para expedir regras jurídicas, inovando o ordenamento positivo".4 Sintetiza o emérito professor estabelecendo que a competência tributária "é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos".5

A Constituição da República de 1988 tratou de forma exaustiva e pormenorizada a matéria tributária, tratando expressamente da repartição da competência tributária, além dos requisitos para o seu exercício.

Assim, a competência tributária no direito brasileiro pode ser definida como a demarcação constitucional das hipóteses sobre as quais a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão legislar criando tributos, respeitados os limites impostos pela própria Constituição, tais como os direitos e garantias dos contribuintes.6

As competências tributárias podem ser cumulativas ou comum, que seriam aquelas que são atribuídas a um ou mais entes políticos, como a que possibilita a cobrança das taxas e das contribuições de melhoria pela União, Estados Distrito Federal e Municípios, (arts. 145, incisos II e III, da CF).7

Page 142

Também encontramos na Constituição a competência privativa ou exclusiva, que é assim chamada por conferir a outorga legiferante apenas a uma determinada pessoa política, retirando dos demais entes federados a possibilidade de instituir tributos sobre aquela específica materialidade. É o que ocorre nos impostos. Cite-se, como exemplo, o art. 153, inciso III, da Constituição da República, que autoriza somente à União a criar impostos sobre a renda das pessoas físicas e jurídicas.

Por fim, há a competência residual, que consiste no poder conferido à União de instituir impostos ou outras fontes de custeio da seguridade social desde que sejam diversos dos já discriminados pela Constituição República de 1988 (arts. 154, inciso I, e 195, § 4o).8

Delineado o conceito que se adota de competência tributária, passa-se a se verificar as suas características.

2. 2 Características da competência tributária

A competência tributária apresenta como características: (i) privatividade; (ii) indelegabilidade; (iii) incaducabilidade; (iv) inalterabilidade; (v) irrenunciabilida-de; e (vi) facultatividade de exercício.9

Paulo de Barros Carvalho assevera que das seis características da competência tributária acima traçadas, apenas três resistiriam a um estudo crítico mais severo, quais sejam: indelegabilidade, irrenuncia-bilidade e incaducabilidade.10 Vejamos cada uma delas, e as críticas apresentadas.

A privatividade é corolário da rígida repartição de competência tributária traçada pela Constituição da República como forma de preservação do pacto federativo. Logo, se é outorgado a determinado ente político a competência para criar determinado tributo, a outro tal competência é vedada.11

Paulo de Barros Carvalho defende que a privatividade é insustentável, e que a competência residual da União para instituir impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária (art. 154, inciso II, da CF) seria o suficiente para derrubar tal característica da competência tributária.12

Com o devido respeito ao mencionado jurista, a crítica não procede. A exceção trazida pelo art. 154, inciso II da Constituição Federal, muito antes de infirmar, confirma a privatividade como característica da competência tributária, a qual é apenas mitigada pela própria Constituição em situação extrema.

Deveras, a referida atenuação da privatividade decorre do forte abalo causado pela guerra, ou sua iminência, no Estado de Direito, a ponto de permitir situações juridicamente inimagináveis em tempo de paz, como a execução de uma sentença que condene um indivíduo a uma pena de morte, sem que isso implique, de modo algum, dúvida acerca da inviolabilidade do direito à vida (art. 5o, inciso XLVII, alínea a, da CF/1988).

Page 143

A indelegabilidade é a vedação da transferência da competência tributária entre os entes políticos internos, para que seja preservado o Estado Federal pretendido pela Constituição com a repartição de competências tributárias.13 A indelegabilidade não pode ser confundida com apara-fiscalidade, por meio da qual somente se transfere a capacidade tributária ativa, atribuindo-se o dever de arrecadação e fiscalização de tributos aos entes federados ou aos órgãos da administração pública, o que não encontra óbice no ordenamento vigente.

A incaducabilidade decorre do fato de a competência tributária não sofrer qualquer consequência jurídica pelo decurso de determinado tempo. A Constituição não estabelece prazo para que os entes federativos legislem, criando ou modificando os tributos que são de sua competência.14 Roque Carrazza cita como exemplo a não instituição do imposto sobre grandes fortunas pela União, o que não a impediria de criá-lo a qualquer momento, ainda que a inércia do legislativo dure anos a fio.15

A inalterabilidade é o ponto central de discussão do presente estudo, já que a competência legislativa não pode ser alterada pelo legislador infraconstitucional, e as emendas à Constituição também encontram fortes limitações em razão dos diversos princípios que regem a matéria, os quais serão abordados em outro tópico.

A irrenunciabilidade é a impossibilidade de o ente tributante negar expressamente a competência que lhe fora outorgada. Tal característica se assenta nas mesmas características da indelegabilidade acima mencionadas.

Por fim, afacultatividade é possibilidade de os entes políticos não legislarem criando tributos de sua competência. Trata-se de uma questão de decisão política que leva em consideração a conveniência, vantagem e utilidade dimensionadas pelos Poderes Legislativo e Executivo, não havendo qualquer previsão de controle externo ou sanção.

Ademais, a não utilização de uma competência tributária por determinada pessoa política não autoriza a qualquer outra dela tomar mão, já que tal usurpação configuraria irreversível inconstituciona-lidade.16

Não há que se admitir que exista uma sanção na Lei Complementar n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), pois apesar de esta lei...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT