O Limbo Jurídico: o Trabalhador que é Considerado Apto pelo INSS e Inapto pelo Empregador ? uma Solução Hermenêutica em Prol da Justiça do Trabalho

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas236-248

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O sofrimento do trabalhador

É muito comum o Poder Judiciário Trabalhista ser chamado a enfrentar a seguinte situação: determinado empregado encontra-se afastado de suas atividades, por força de benefício previdenciário (auxílio-doença comum ou acidentário), até o momento em que esta prestação é cancelada, pelo fato de que o INSS o considerou apto ao trabalho; o trabalhador, neste contexto, dirige-se à sede da empregadora para retomar as suas atividades profissionais, quando é comunicado pelo médico da empresa que, na verdade, ainda encontra-se inapto ao labor.

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Com isso, se inicia um martírio na vida daquela pessoa: passa, a partir da decisão exarada pelo INSS, a não receber mais valores a título de benefício previdenciário; ao mesmo tempo, por força da avaliação do médico da empresa, não poderá retomar as suas atividades laborativas, ficando, também, sem receber salários. O resultado é um só: surge para o trabalhador um limbo jurídico, uma vez que lhe é retirada a fonte de renda imprescindível para arcar com o sustento próprio e/ou familiar.

Geralmente, diante desta situação, o trabalhador, com base no laudo emitido pelo médico da empresa, formula pedido administrativo de reconsideração do cancelamento do benefício junto ao INSS. Caso tal requerimento seja negado, passa a bater às portas do Poder Judiciário, ingressando ora com uma demanda perante a Justiça Comum (Federal ou Estadual, a depender da prestação que está recebendo), para postular o restabelecimento da benesse previdenciária, ora na Justiça do Trabalho, para reclamar os salários não pagos e demais parcelas durante todo este período. E, durante o período de tramitação destas demandas, continua o trabalhador sem receber a renda necessária para a sua subsistência.

A situação é contraditória, na mente do trabalhador. Afinal de contas, está ele apto ou inapto para o desempenho de sua atividade laborativa? Esta é a pergunta da qual se aguarda uma resposta do Poder Judiciário. Mas, a Justiça do Trabalho e a Justiça Federal, em demandas distintas, poderão ofertar uma resposta coerente à pretensão de direito material vindicada? Não há dúvidas que, em tese, a resposta a esta pergunta será negativa, dada a possibilidade de decisões contraditórias. Expliquemo-nos.

As duas ações tramitam em órgãos distintos do Poder Judiciário (Justiça Comum, Estadual e/ou Federal e Justiça do Trabalho). Em ambos os processos, provavelmente, serão realizadas perícias médicas distintas. Basta, para tanto, que os laudos sejam contraditórios: aquele realizado perante a Justiça Comum, considerando o trabalhador apto ao trabalho, dando razão ao INSS no cancelamento do bene- fício previdenciário; o apresentado pelo perito nomeado pela Justiça do Trabalho, por sua vez, considera o trabalhador inapto, dizendo que a postura do empregador está correta.

E, agora? As decisões judiciais, calcadas nos referidos laudos médicos, serão provavelmente contraditórias. O Poder Judiciário, ao invés de pacificar o conflito, agravou a situação do trabalhador! A conclusão, neste caso, é inequívoca: existe algo de equivocado, uma vez que, até para o mais leigo ser humano, um trabalhador apenas poderá ser considerado apto ou inapto ao trabalho. Não existe aptidão e inaptidão simultâneas. A dignidade da pessoa humana, sem dúvidas, é desrespeitada, por retirar do trabalhador a condição de adquirir os bens materiais e imateriais necessários para uma vida digna, já que, num simples passe de mágica, deixa de receber salários e benefício previdenciário, sem qualquer outra fonte de renda.

Devemos, neste compasso, buscar uma solução mais adequada. Uma resposta que esteja calcada nos primados do valor social do trabalho, no respeito à pessoa humana e na garantia do mínimo existencial. Precisamos buscar um mecanismo que possa, efetivamente, equilibrar este problema. Esta equação perpassa, obrigatoriamente, pelo pleno acesso à Justiça do Trabalho. A nova ordem constitucional, trazida pela EC n. 45/04, autoriza a criação de um entendimento que, de uma vez por todas, sane o equívoco ora apontado, criando um caminho processual que, sem dúvidas, trará maior segurança jurídica às partes envolvidas, bem como demarcará, de forma definitiva, o importante papel consagrado à Justiça do Trabalho pelo legislador constitucional, na promoção dos direitos sociais fundamentais. É o que passaremos a expor.

Uma nova interpretação das normas constitucionais: em busca da competência da Justiça do Trabalho

A dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho são princípios fundamentais

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que estão previstos no art. 1º, incisos III e IV, de nossa Constituição Federal. O preâmbulo da CF, por sua vez, dispõe que o Brasil é considerado um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o efetivo exercício dos direitos sociais, além de promover a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, justa e igualitária. A Constituição Federal, do ponto de vista político-ideológico, representa um projeto liberal de sociedade. E, nas palavras de Wilson Steinmetz1:

Trata-se de um liberalismo humanizado, democrático e socialmente orientado: de um liberalismo matizado (“temperado”) pela dignidade da pessoa humana, pelos direitos e garantias fundamentais, pela democracia e pelas aspirações de igual-dade, de bem-estar e de justiças sociais. Ao lado do princípio da livre-iniciativa, assegurador da economia de mercado (CF, arts. 1º, IV, e 170, caput) e do princípio geral de liberdade (CF, art. 5º, caput) estão o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) os direitos e as garantias fundamentais (CF, Título II), o princípio democrático (CF, art. 1º, parágrafo único), o princípio da igualdade (CF, art. 5º, caput, e art. 3º, III e IV) e o princípio objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária (CF, art. 3º, I).

Estes são os pilares que devem nortear o intérprete e o aplicador do direito, na solução dos casos concretos. Discorrendo sobre a inter-pretação das normas constitucionais, ensina Luis Roberto Barroso2 que:

As especificidades das normas constitucionais levaram a doutrina e a jurisprudência, já de muitos anos, a desenvolver ou sistematizar um elenco próprio de princípios aplicáveis à interpretação constitucional. Tais princípios, de natureza instrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenação que se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supremacia da Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o da unidade, o da razoabilidade e o da efetividade.

(...)

A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas:
(i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos; (ii) quanto ao papel do juiz cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável aos problemas a ser resolvido, revelando a solução nele contida. Vale dizer: a resposta para os problemas está integralmente no sistema jurídico e o intérprete desempenha uma função técnica de conhecimentos, de formulação de juízos de fato. No modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante subsunção.

Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre encontra relato abstrato no texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado norma-tivo. O intérprete torna-se coparticipante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de

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sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.

Pois bem. Com o advento da EC n. 45/04, foi rompido o antigo paradigma de que a Justiça do Trabalho possuía competência restrita, diretamente relacionada aos sujeitos da relação processual: empregado versus empregador. A partir de então, a competência desta Especializada deixou de se guiar pelo aspecto subjetivo, para adotar um critério puramente objetivo. Assim, todas as matérias que sejam oriundas da relação de trabalho passam a ser processadas e julgadas por este órgão especializado do Poder Judiciário (art. 114, inciso I, da CF), situação que abrange, inclusive, a administração pública direta e indireta (destaque-se, para este estudo, a autarquia previdenciária).

Esta mudança constitucional, atrelada à consagração do princípio fundamental da duração razoável do processo, tendo como escopo a ser perseguido a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, deve ser levada em consideração para a análise dos demais preceitos constitucionais que regulamentam as competências atribuídas aos diversos órgãos do Poder Judiciário brasileiro. Ganha especial destaque e relevo a previsão contida no art. 109, § 3º, da CF, in verbis:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

Inciso I. as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de...

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