Licença-maternidade, licença-paternidade e licença parental. Direito voltado à proteção da família, à dignidade da pessoa humana e instrumento de igualdade no trabalho

AutorDayse Coelho Almeida
Ocupação do AutorDoutoranda, mestre e especialista em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de Direito. Advogada e consultora jurídica
Páginas60-69

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1. Proteção constitucional à família/ entidade familiar: licença-maternidade e paternidade como direitos dirigidos à família

Os direitos fundamentais, núcleo da Constituição Federal de 1988 (CF/88), ocupam uma posição jurídica diferenciada no sistema jurídico, condição para o exercício de outros direitos, representando a constitucionalização dos direitos humanos1. Estas características dotam tais direitos de proteção especial constitucional2 - a condição de cláusulas pétreas, não sendo permitida alteração in pejus (ex vi art. 60, § 4º, IV, CF/88).

É característica dos direitos fundamentais a eficácia ou aplicabilidade imediata por força constitucional3. Esta eficácia é compreendida em dois planos4: o vertical, ou seja, aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre o Estado e particulares; e no horizontal, que implica na incidência ou aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares5. Esta última incidência ou aplicabilidade dos direitos fundamentais, a horizontal, tem profundos reflexos na seara trabalhista, pois esta contém direitos fundamentais e trava relações jurídicas entre particulares, especial-mente no art. 7º da Constituição, embora o Direito do Trabalho tenha sido contemplado ao longo do texto constitucional.

"Há direitos fundamentais previstos na Constituição Federal que são diretamente dirigidos aos particulares6, como ocorre com a maioria dos direitos

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trabalhistas previstos em seu art. 7º."7 Inclusive, a Corte Interamericana de Direitos Humanos no item 5 da Opinião Consultiva n. 18 de 17.9.20038

contempla o mesmo raciocínio sobre a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas. Este posicionamento, muito além de meramente teórico, consubstancia-se na mais contemporânea compreensão dos direitos fundamentais9.

"[...] é possível concluir que, mesmo sem entrar na discussão das teses jurídicas sobre a forma de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, a jurisprudência brasileira10 vem aplicando diretamente os direitos individuais consagrados na Constituição na resolução de litígios privados11."

O conteúdo do art. 7º da Constituição da República, portanto, é de matiz fundamental, de forma que aplicá-lo às relações privadas é consequência da sua natureza jurídica. Neste prisma, as licenças-maternidade e paternidade, albergadas no art. 7º, incisos XVIII e XIX da CF/88, ostentam o status de direito fundamental, protegidas pela condição de cláusula pétrea12. A interpretação do art. 7º da CF/88 deve ser feita de modo harmônico e sistematizado com as demais normas constitucionais, e, em especial, com atenção ao comando do caput do artigo, que expressamente aduz "São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social" (grifo nosso).

É vontade expressa do legislador originário que outros dispositivos sobrevenham ao texto constitucional para que ampliem/melhorem a condição social do trabalhador, como também a incorporação ao texto constitucional toda e qualquer melhoria advinda do plano infraconstitucional. Trata-se, a previsão do caput - melhoria da condição social, acepção trabalhista do conceito de dignidade da pessoa humana13. "O sistema jurídico se estrutura no plano constitucional como suporte sistemático e aberto, orientado teleologicamente pela dignidade do ser humano"14, que é início e fim de toda produção jurídica.

Atualmente, as licenças-maternidade e paternidade encontram-se previstas no art. 7º, XVIII e XIX e no art. 10, § 1º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. E, em sede infraconstitucional, há previsões na Consolidação das Leis Trabalhistas, nos art. 392 e ss. e art. 473, III e em legislação previdenciária. A última alteração legislativa adveio da Lei n. 12.873/2013 que modificou a redação dos dispositivos celetistas, incorporando aos mesmos os avanços jurisprudenciais sobre o tema, em especial a licença nos casos de guarda e adoção.

Sobre a matéria, ainda, há duas importantes Propostas de Emenda Constitucional (PEC) tramitando nas casas legislativas, PEC ns. 30/07 e 515/10. A PEC n. 30/07 versa sobre a ampliação da licença maternidade para 180 (cento e oitenta) dias e a PEC n. 515/10 trata da proibição de dispensa sem justa causa, por 7 (sete) meses, no período após o parto ou adoção15. Causa-nos espécie que o legislador seja instado a alterar a Constituição, pois em sede de direitos fundamentais o texto constitucional é o patamar mínimo civilizatório16.

A inovação legal destinada a ampliar e/ou ratificar a incidência ou efeito do direito fundamental pode ser feita via infraconstitucional17, sem qualquer prejuízo à integridade do texto constitucional. Assim, entendemos que as duas alterações objeto

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das citadas PECs poderiam ser feitas por lei federal (competência privativa da União para legislar em matéria trabalhista e, também, em seguridade social, ex vi art. 22, I e XXIII, da Constituição da República18).

A dignidade da pessoa humana do trabalhador é o objetivo nuclear do Direito do Trabalho. "Somente com a valorização do ser humano, enquanto ser que sobrevive, trabalha e interage com outros e com respeito de suas diferenças pelo Direito, pela Sociedade e pelo próprio Estado, será possível apreender a dignidade do trabalhador."19 Sobre a dignidade da pessoa humana, Flávia Piovesan assim a conceitua:

Sustenta-se que é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e ponto de chegada para a hermenêutica constitucional contemporânea. Consagrase, assim a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a orientar tanto o direito internacional como direito interno20.

As licenças-maternidade e paternidade são direitos fundamentais/humanos exercidos pela mãe e pelo pai21, respectivamente, mas que também constituem-se em garantias ou direitos fundamentais do cidadão-filho22. Portanto, tratam-se, as licenças, de normas protetivas à família, base da sociedade, que goza de proteção especial do Estado, na forma do art. 226 da CF/88. Como consequência lógica, este direito pode ser invocado por qualquer membro da família, pois o art. 226, § 4º, alberga o conceito de entidade familiar, no qual os laços sanguíneos e afetivos manifestam-se, juridicamente, em sede de direitos.

A licença-maternidade, paternidade ou até mesmo a parental, por conseguinte, são instrumentos jurídicos voltados à proteção da família, destinados a garantir sua continuidade, unidade, solidariedade e coparticipação.

2. A licença-maternidade e paterni-dade devem ser iguais? devemos abolir as licenças destinadas ao pai ou à mãe e substituí-las por uma licença única, parental, a ser repartida entre os pais ou entidade familiar de forma igualitária?

Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, uma vez que todos estão submetidos à mesma lei, gozam dos mesmos direitos e sujeições a ela inerentes. Este é o paradigma liberal da igualdade formal. Entretanto a igualdade meramente formal distorce a própria ideia de isonomia e também de igualdade23. Há caracteres distintivos entre as pessoas considerados relevantes para o Direito, denominados fatores de discrímen, porque representam justificativas de um tratamento jurídico diferenciado.

Em relação ao assunto tratado, a mulher diferencia-se em decorrência do critério biológico, pois cabe-lhe a gestação, o parto e a amamentação. Apesar de o homem participar da família e ser-lhe fundamental, ofertando suporte emocional (e, muitas vezes, financeiro), sua condição masculina o exclui das alterações físico-hormonais próprias da gestação e do parto, além da impossibilidade da amamentação, por ser o homem desprovido de glândulas mamárias aptas à produção de leite.

As condições gestacional e parturiente e, em momento seguido, de amamentação são fatores de discrímen24 suficientes para que seja a mulher a destinatária de uma licença, em específico, destinada a perpassar por estes momentos. O entendimento contrário é prejudicial ao nascituro e ofensivo ao seu direito fundamental à vida e ao desenvolvimento físico, intelectual e emocional.

Há, entretanto, uma questão de suma relevância que precisa ficar clara. O fato de a mulher ter direito a uma licença pela condição gestacional, de parto e amamentação é motivo para que ela seja destinatária desse direito em detrimento das pessoas que não perpassam pela mesma situação (os cidadãos de qualquer gênero - homens ou mulheres - que não estejam grávidos, parturientes ou amamentando).

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A condição de gestante, parturiente ou de alei- tamento não é fator de discrímen relativo à participação familiar, uma vez que a condição física ou de saúde é indiferente para a composição da família. Nas relações familiares todos estão em condições de horizontalidade, ausente hierarquia de qualquer natureza25, possuindo os mesmos direitos e obrigações.

A família/entidade familiar trata-se de uma relação jurídica com direitos e obrigações recíprocos, pautados pela corresponsabilidade e pela solidarie-dade. Diante disto, não há fator de discrímen entre homens e mulheres na condição de partícipes da família/entidade familiar. Assim sendo, não há o que justifique a redução ou inexistência de direito para o homem. Este é sujeito do direito e também da obrigação de corresponsabilidade e solidariedade familiar26. Como elucida Paulo Lôbo:

A Constituição e o direito de família brasileiros...

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