Liberdade de Expressão e suas Restrições na Democracia

AutorAnita Caruso Puchta
Páginas31-38

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"Direito é, portanto, o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser conciliado com o arbítrio do outro, de acordo com uma lei geral de liber-dade." (Kant)

Introdução

O tema liberdade é muito complexo nos ordenamentos jurídicos. A odiosa escravidão de seres humanos, por exemplo, só foi extinta na idade contemporânea mediante muitas lutas abolicionistas, conquistas e avanços jurídicos e filosóficos.

A liberdade de expressão, de manifestação e de opinião constituem direitos humanos essenciais no estado democrático de direito. Ausência de liberdade de opinião e manifestação e aplicação de censura prévia são próprios de regimes totalitários, nos quais reinam intolerância, arbitrariedades, desvios de poder e outras atrocidades condenáveis no regime de democracia.

Oportunidade de se expressar, de ser representado, de emitir opinião sobre temas diversos, de participar, de dialogar, em especial, sobre temas políticos, de votar e ser votado constituem base para o estado democrático de direito.

A repressão, os cerceamentos de liberdades, a queima de livros censurados, a punição de pensadores, cientistas, artistas e muitos outros ataques à liberdade de expressão ocorrem em regimes despóticos e obstaculizam os avanços da humanidade.

A liberdade de expressão está ligada ao direito fundamental de informação e à democracia. Nos regimes totalitários, só é possível informar aquilo que o déspota permite, o que resulta em inúmeras violações desses direitos. Nesses regimes, há censura prévia, perseguição e muitas atrocidades contra os que ousam criticar o poder público e informar a população.

Quem tem o poder tende a abusar. Manifestações contra governantes causam polêmicas, mesmo em sistemas representativos, pois muitos deles desejam a repressão, calar a voz de seus opositores ou de qualquer pessoa que emita opinião contrária a seus atos de governo ou suas posições ideológicas.

Com a fixação da indenização por danos morais na jurisprudência brasileira, o tema liberdade de expressão tem sido cada vez mais objeto de investigação. Os direitos à imagem, honra, privacidade e intimidade, por limitarem liberdades, favorecem reflexões aprofundadas e pesquisas sobre esses direitos fundamentais em rota de colisão.

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A imposição de restrições à liberdade de expressão evita o discurso do ódio e a intolerância com minorias. Atos de discriminação, racismo, homo-fobia, xenofobia, enfim, práticas que intencionam exclusão, marginalização e opressão, em regra, não constituem liberdade de expressão, mas sim abusos de liberdade e violação de direitos de outrem.

Atualmente, há mais consciência na proteção de minorias e indignação contra os que desrespeitam seus direitos e afrontam sua dignidade.

Com a criação da internet, redes sociais e outros aplicativos, crescem ainda mais o interesse e a necessidade de investigação sobre os limites da liber-dade de expressão na democracia. A comunicação se tornou célere, instantânea, em tempo real (on-line), todos têm acesso a receber notícias com muita rapidez e também se expressar com muita facilidade1.

O ativismo político foi potencializado, e o espectador transformou-se e tornou-se um ativista.

Há muita oportunidade para se manifestar e emitir opiniões nas redes sociais; os cidadãos são induzidos a postar, curtir e compartilhar mensagens. A comunicação eletrônica se popularizou e gera muitos conflitos entre liberdade de expressão e direitos de personalidade, o que aumenta o interesse pela pesquisa sobre os limites da manifestação de opinião.

1. Histórico

Em todas as fases da humanidade, existiram polêmicas sobre a liberdade. Entretanto, na idade contemporânea, há avanços significativos, com a abolição da escravatura, previsão da liberdade de expressão, opinião e manifestação e direito de informação nas constituições, afastamento do absolutismo e instalação dos regimes democráticos.

A crueldade contra seres humanos escravizados foi ampla na história. Negros, povos vencidos em guerra e muitos outros experimentaram a odiosa escravidão, quando homens eram forçados a trabalhar até a exaustão, além de serem maltratados e torturados. A humilhação era grande e nem sequer eram considerados sujeitos de direito, eram tidos como coisas, objeto de direito, passíveis de alienação e destruição pelo proprietário. Assim, não exerciam direitos próprios da essência e dignidade humanas.

Na idade média, quem fosse considerado um herege pelo clero sofria penas de prisão e de morte, na forca ou fogueira. Judeus e inclusive aqueles que praticavam seus costumes já eram suspeitos na Inquisição, sobretudo, na Espanha, onde a crueldade foi grande, pois havia população de diferentes religiões e uma vasta diversidade cultural.

Tudo o que contrariava dogmas da igreja católica era considerado heresia. Quem violava tais dogmas ou criticava posturas da igreja era perseguido, torturado e considerado herege, sujeito à pena de prisão e morte, sem o mínimo de defesa. Havia muita tortura, em especial, para provocar confissão das supostas heresias. Muitos dogmas católicos obstaculizavam avanços científicos, pois não era permitido contrariar preceitos bíblicos, principalmente o livro do Gênesis.

O que causa perplexidade no contexto da Inquisição é que valores essenciais do cristianismo eram violados, como liberdade, fraternidade, inclusão, dignidade humana, solidariedade, etc. A ética cristã era violentamente afrontada pelo clero com escusas injustificáveis, como interpretações temerárias de preceitos bíblicos e fé, sem o mínimo de razão. A luta pelo poder e a intolerância com outros credos e ideologias eram muito fortes e, por esses motivos, cometiam-se atrocidades e crueldades totalmente condenáveis pelo cristianismo.

Muitos cientistas necessitavam renegar teorias para não serem mortos, como foi o caso de Galileu Galilei. Giordano Bruno e Joana d’Arc foram queimados vivos na fogueira e em praça pública por serem considerados hereges.

O antissemitismo foi tão disseminado e consolidado que culminou no extermínio de judeus nos campos de concentração nazista em pleno século XX. Houve muita violência, crueldade e morte, como as que ocorreram nas câmaras de gás. Portanto, o discurso do ódio necessita ser afastado, pois excessos na liberdade de expressão, a exemplo da incitação ao ódio contra raça, cor, nação, gênero, po-

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dem ensejar massacres futuros. O respeito e o convívio com a diversidade são muito relevantes e evitam atrocidades, maus sentimentos contra a humanidade e sedimentam a democracia.

Veja-se que esse extermínio de judeus ocorreu depois revoluções (francesa e americana), criação de constituições, declaração de direitos do homem e do cidadão, abolições de escravaturas e muitas conquistas democráticas e avanços no Direito. Causa perplexidade ocorrer extermínio de judeus em pleno século XX, período no qual a visão do Direito é mais avançada do que em outras fases da história da humanidade.

Depois dos massacres das grandes guerras mundiais, houve a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), muitos tratados e convenção sobre direitos humanos foram pactuados, e o estudo sobre direitos fundamentais avançou, alçando esses direitos a uma posição de supremacia nos ordenamentos jurídicos. Com isso, o constitucionalismo também se fortaleceu, pois concepções positivistas passaram a ser usadas nas defesas dos exterminadores em nome do estrito cumprimento da lei.

Filósofos adaptaram teorias da antiguidade para o cristianismo a fim de não serem perseguidos, como foi o caso de São Tomás de Aquino, que cristianizou Aristóteles, e de Santo Agostinho, que cristianizou Platão.

Charles Darwin também causou muita polêmica ao tratar da evolução das espécies, pois sua teoria contrariava relatos bíblicos e o cristianismo.

Todos que se expressavam na arte, na ciência, na literatura e no jornalismo sempre tiveram problemas com censuras e arbitrariedades. Atores, cantores, compositores e músicos sempre foram alvo de retaliações.

Karl Marx menciona que muitos descobridores foram assassinados ou sepultados vivos depois de comunicar suas descobertas aos déspotas2.

Na última ditadura brasileira, compositores muito criativos venciam a censura com expressões ambíguas, como foi o caso de Chico Buarque com a música "Cálice". Os artistas usavam a criatividade com o objetivo de conseguir liberar obras opositoras da ditadura militar e, muitas vezes, isso ocorria com sucesso, visto que os censores não eram intelectuais.

2. Liberdade e sociedade

Segundo reflexão de Zygmunt Bauman, "só quem vive isolado não tem restrições à liberdade"3.

Essa limitação é essencial para o convívio social e, sob essa ótica, o Direito desempenha um papel fundamental na regulação das relações sociais. Desde que o ser humano começou a viver em grupos, houve a necessidade de restringir a liberdade dos seres humanos, o que...

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