A Liberdade de Escolha, o Sentido da Vida e os Valores Vitais: Aspectos da Dimensão Existencial da Pessoa Humana

AutorHidemberg Alves da Frota - Fernanda Leite Bião
CargoAdvogado em Manaus/AM - Psicóloga e orientadora profissional/MG
Páginas53-57

Page 53

Introdução

Este artigo estuda circunstâncias em que a dimensão existencial da pessoa humana1 reverbera na jurisprudência do direito comparado, a qual ecoa preocupações de julgadores com os reflexos nocivos à integridade do indivíduo propiciados por alterações substanciais no curso de sua existência e entraves supervenientes à execução do planejamento que traçara para o seu futuro.

1. A liberdade de escolha: considerações dos Justices Theodor Or e Meir Shamgar

O Justice (aposentado) Theodor Or, da Suprema Corte de Israel (Beit HaMishpat HaElyon) enxerga no "direito da pessoa de moldar2 sua vida e seu destino"3 a expressão de "um componente existencial da vida em sociedade de todo indivíduo"4, "essencial à autodeterminação"5 do ser humano, a abarcar "todos os aspectos centrais da sua vida"6, tais quais o lugar em que reside, a profissão que exerce, as pessoas com quem convive e as crenças que professa7.

T. Or tem por premissa que a personalidade e a vida da pessoa natural são forjadas pelo conjunto das suas escolhas8.

O referido jurista polaco-israelense invoca o pensamento de Meir Shamgar, ex-presidente do Pretório Excelso de Israel, a divisar, como projeção da dignidade da pessoa humana, a liberdade do indivíduo realizar "escolhas volitivas"9, "expressar ambições"10 e "escolher os meios de realizá-las"11.

2. A maternidade como sentido da vida (caso Nahmani)

No caso Nahmani (CFH12 2401/95, Daniel Nahmani v. 1. Ruth Nahmani, 2. Assuta Ltd Private Hospital and 3. the Attorney-General13), a Suprema Corte de Israel, em 12 de setembro de 1996, por maioria de 7 votos (Justices Ts. E. Tal, D. Dorner, E. Goldberg, Y. Kedmi, Y. Türkel, G. Bach e E. Mazza) a 4 (presidente A. Barak e Justices T. Strasberg-Cohen, T. Or e I. Zamir), reformou acórdão proferido pela própria SCI em 30 de março de 1995 (CA14 5587/93), oportunidade em que, por maioria de 4 (vice-presidente A. Barak e Justices T. Strasberg-Cohen, D. Levin e I. Zamir) a 1 (JusticeTs. E. Tal), reformara decisão monocrática proferida, no âmbito da Corte Distrital de Haifa, em 2 de setembro de 1993 (OM 599/92), pelo Justice H. Ariel.

Por meio do supracitado aresto de 12 de setembro de 1996, a SCI, em formação plenária, ao alterar seu posicionamento primitivo, permitiu a Ruth Nahmani continuar, nos Estados Unidos da América, o procedimento de fertilização in vitro (FIV)15, iniciado no Estado de Israel, de óvulo em que fora inserido o esperma de seu marido, Daniel Nahmani, o qual, após, tendo se separado de sua consorte e constituído novo relacionamento afetivo-sexual de que resultara um filho, almejava, perante o Poder Judiciário israelense, impedir o Hospital Assuta de entregar a Ruth Nahmani o óvulo fertilizado, com vistas a evitar que, nos EUA, fosse introduzido no útero de terceira, isto é, o esposo intencionava obstar o prosseguimento do que fora planejado por ambos os cônjuges antes de se separarem, os quais, para tanto, obtiveram à época a chancela da Suprema Corte de Israel (HCJ 1237/91), tutela jurisdicional necessária naquele contexto, porque o direito israelense proibia a reprodução humana assistida por gestação substituta e restringia a FIV aos casos em que a fertilização seria realizada na mulher de quem se retirou o óvulo16.

Segundo o entendimento inicialmente predominante na Suprema Corte de Israel17, manifestado no CA 5587/93, em decorrência da divergência aberta pelo voto do Justice Ts. E. Tal, após a leitura do primeiro voto, alinhavado pela Justice Tova Strasberg-Cohen, uma vez fertilizado o óvulo da esposa com o consentimento do marido, torna-se irrevogável a outorga marital, por prevalecer o direito da esposa (de completar o procedimento necessário à gestação e ao consequente provável nascimento da criança e, assim, exercer a maternidade) sobre o direito do marido (de que fosse destruído o óvulo e, destarte, não lhe incidissem os respectivos deveres parentais), em benefício da expectativa (surgida com o início de tal fertilização) nutrida pela cônjuge

Page 54

de se tornar mãe e da possibilidade fundada de que tal procedimento médico redundasse no nascimento de um ser humano com vida, mormente na circunstância em tela, em que a consorte não tinha condições de gerar em seu próprio ventre uma criança, em razão de histerectomia -retirada do útero - efetuada, por motivo de saúde, três anos depois de principiado o matrimônio18.

Dentre os votos vencidos19 no CA 5587/93, a reputarem indispensável fosse ratificada a outorga do esposo no decorrer de todo o procedimento de fertilização (sobretudo em face da separação do casal), inclui-se, conforme salientado alhures, o pronunciamento da Justice Strasberg-Cohen, a qual ressaltou que o "tópico da fertilização in vitro envolve questões existenciais concernentes à natureza da vida"20 ("The topic of in-vitro fertilization involves existential questions concerning the nature of life"21), ponto de vista compartilhado pelo Justice Tal (conquanto, ao contrário daquela magistrada, filiado ao posicionamento majoritário), ao obtemperar que o interesse jurídico relativo à paternidade "constitui valor fundamental e existencial tanto para o indivíduo quanto para o todo da sociedade"22 ("The interest in parenthood constitutes a basic and existential value both for the individual and for the whole of society"23).

Deveras, a relevância da vertente existencial da parentalidade alicerçou ambas as correntes de pensamento naquela Corte Suprema.

Enquanto, por exemplo, a Justice Dalia Dorner (favorável ao prosseguimento dafertilização in vitro) realçou que a maioria das pessoas naturais, homens ou mulheres, enxerga no ensejo de ter filhos "uma necessidade existencialque dá sentido às suas vidas"24 (Indeed, whether man orwoman, most people regard having children as an existential necessity that gives meaning to their lives."25), o Justice Aharon Barak (contrário ao pleito de Ruth Nahmani) frisou o aspecto existencial da paternidade e da maternidade, para demonstrar que se trata de uma escolha de tamanha magnitude que não pode ser deixada ao alvedrio de apenas um dos pais ("Having children is a matter too important, too experiential, too existential, to leave it, at any stage, to one party only"26).

3. A proteção à vida do nascituro em tensão com os valores existenciais ou vitais da gestante (bverfge 88, 203)

O raio de abrangência da dimensão existencial do ser humano faz questões caras aos direitos civis imateriais (direitos existenciais27) e ao direito de família alcançarem a órbita do direito penal.

Ilustrativa, nesse sentido, a situação em que, ao examinar a então recente "disciplina jurídica unificada para o direito de aborto"28 (formulada após a reunificação tedesca), o Segundo Senado29 (Zweiter Senat) do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha - TCF (Bundesverfassungsgericht- BVerfG), em aresto de 28 de maio de 1993 (BVerfGE30) 88, 203-Schwangerschaftsabbruch II31), ao ratificar o acórdão paradigma (BVerfGE 39, 1 - Schwangerschaftsabbruch I) pronunciado pelo Primeiro Senado (Erster Senat) daquela Corte em 25 de fevereiro de 197532, entendeu competir ao Poder Legislativo pormenorizar em lei formal33 as "situações excepcionais"34 em que o grau de sacrifício imposto aos Lebenswerte35 - valores existenciais (tradução oficial anglófona)36 ou valores vitais (tradução lusófona da equipe do professor Leonardo Martins)37 - de uma gestante seria tão superlativo a ponto de se afigurar juridicamente inexigível que ela completasse a sua gravidez.

Em outras palavras, consoante assentou o Segundo Senado do TCF no item 7 da ementa do referido decisum (BVerfGE 88, 203), incumbiria ao "legislador determinar concretamente"38 os "elementos típico-normativos de execução [causas excludentes de ilicitude]39 segundo o critério da inexigibilidade (Unzumutbarkeit)"40 (mais conhecido como "critério da proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação stricto sensu"41), desde que "presentes gravames que signifiquem um tal grau de sacrifício de valores vitais próprios, que isso não possa ser [racionalmente] esperado da mulher"42.

Desse modo, em tal aresto (BVerfGE 88, 203), o Segundo Senado reiterou o posicionamento esposado pelo Primeiro Senado (BVerfGE39, 1), quando este órgão fracionário do TCF elencou nas "causas excludentes de ilicitude"43 não apenas os casos nos quais o ato abortivo revela-se "necessário para evitar um perigo para a vida da gestante ou o perigo de dano grave ao seu estado de saúde"44 como também as circunstâncias em que o legislador detectou a presença de "outros ônus extraordinários para a gestante, que sejam semelhantemente intensos"45, inclusive situações nas quais se "chocam"46 o "respeito pela vida do nascituro e o direito da mulher não ser forçada a sacrificar, além dos limites viáveis, seus próprios valores vitais em prol da observância desse bem jurídico"47.

Considerações finais

Da análise dos julgados acima comentados, intui-se que a existência humana digna (em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana48) se vincula não apenas à incolumidade física, à sobrevivência biológica, à automanutenção financeira e ao exercício dos direitos sociais, econômicos e culturais como também à salvaguarda da integridade psíquica e do bem-estar psicológico da pessoa natural, bem assim do direito do indivíduo de escolher e realizar atividades (inclusive de concretizar metas) que dão sentido à sua vida e, ao mesmo tempo, não atentam contra o ordenamento jurídico.

Daí se nota que a situação existencial humana (ou seja, o "conjunto de relações nas quais o ente humano existente se encontra no mundo e com os outros"49 -pessoas e coisas50) e o direito ao mínimo existencial (direito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT