Lei 11.106/2005: Novas Modificações ao Código Penal Brasileiro

AutorRenato Marcão
CargoMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Penal, Político e Econômico
Páginas5-13

Page 5

1. Introdução

Entrou em vigor no dia 29 de março de 2005, data de sua publicação, a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que alterou o Código Penal brasileiro em relação ao disposto nos arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231, e acrescentou o art. 231-A.

Por força do disposto no art. 3º da referida lei, o Capítulo V (Do lenocínio e do tráfico de mulheres) do Título VI (Dos crimes contra os costumes), da Parte Especial do Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: "Do lenocínio e do tráfico de pessoas".

Além das modificações acima indicadas, e em razão do disposto em seu art. 5º, o novo diploma legal revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3º do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei nº2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

Em sentido amplo, as modificações foram sensíveis e as novas regras reclamam, desde logo, apreciação reflexiva para uma melhor compreensão de todos os temas abordados.

2. Sobre as modificações introduzidas

Para uma melhor compreensão, passaremos a analisar cada uma das modificações introduzidas no Código Penal, na exata mesma ordem de disposição constante da Lei 11.106/2005, e depois, em tópico distinto, cuidaremos de tecer considerações a respeito das regras revogadas, tudo conforme segue.

2.1. Art 148 do Código Penal

No caput do 148 do Código Penal estão descritas as condutas que tipificam o seqüestro e o cárcere privado. Ao narrá-las o legislador assim dispôs: "Privar alguém, de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado".

A pena prevista para as hipóteses do caput é de reclusão, de um a três anos. Na precisa visão de Nélson Hungria: "Entende Romeiro (Dicionário de direito penal), que o cárcere privado é um genus, de que o seqüestro é uma species: 'O crime de cárcere privado pode tomar a forma de detenção ou de seqüestro; dá-se a detenção quando a violência exercida sobre a pessoa consiste no impedimento ou obstáculo de sair de um certo e determinado lugar; no seqüestro compreende-se o fato de conservar a pessoa em lugar solitário e ignorado, de modo que difícil seria a vítima obter socorro de outro'. Parece-nos, entretanto, mais acertado dizer que o seqüestro é o que é o gênero e o cárcere privado a espécie, ou, por outras palavras, o seqüestro (arbitrária privação ou compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o nome tradicional de cárcere privado quando exercido in domo privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado à prisão pública. Tanto no seqüestro quanto no cárcere privado, é detida ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no cárcere privado, há a circunstância de clausura ou encerramento. Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria uma diferença de tratamento penal"1.

Evidencia-se como objeto jurídico da tutela penal a liberdade individual, a liberdade de ir e vir, ficar, permanecer; a liberdade de locomoção, em última análise.

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, assim como qualquer pessoa está em condição de ser sujeito passivo. O elemento subjetivo é o dolo. Basta o dolo genérico para a configuração, e não há forma culposa.

Admite-se a tentativa. Conforme Celso Delmanto e outros: "É delito material, que se consuma no momento em que ocorre a privação; é permanente, sendo possível a prisão em flagrante do agente, enquanto durar a detenção ou retenção da vítima"2.

Seus §§ estabelecem figuras qualificadas, e as modificações feitas pela nova lei estão dispostas no §1º.

2.1.1. Sobre o § 1º, inc I

O § 1º estabelece formas qualificadas em que a pena é de reclusão, de dois a cinco anos, e quanto à pena nada mudou.

Em sua antiga redação o inc. I do § 1º do art. 148 do Código Penal assim dispunha: "Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos". A nova redação tem o seguinte texto: "Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos". A proteção penal agora foi estendida ao companheiro do agente.

2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro

Entenda-se: companheiro ou companheira. Aqui a redação ampliou o rol das formas qualificadas tendo em vista a necessidade de tratamento igualitário entre "cônjuge e companheiro" como decorrência do novo perfil jurídico-constitucional desta última situação reguladora de relacionamentos, que não está amparada nas mesmas formalidades que protegem os cônjuges.

Antes da previsão expressa não era possível estender a forma qualificada aos autores de tais crimes praticados contra companheiros em razão de estar vedada em Direito Penal a interpretação ampliativa do alcance da norma de maneira a ensejar resultado gravoso ao réu.

O sistema de proteção encontrava-se falho, omisso, e isso ao menos desde a Constituição Federal de 1988, tendo em vista a nova disciplina indicada para o tratamento das relações entre companheiros ou concubinos, conviventes em união estável.

Questão interessante a ensejar debate nas instâncias judiciárias refere-se à possibilidade da forma qualificada estender-se aos autores de crimes contra "companheiro ou companheira" em se tratando de relação homoafetiva.

Considerando que o ordenamento jurídico não dá proteção a tais relações; que não há por parte do Estado qualquer reconhecimento expresso para efeito de salvaguarda de direitos, o princípio da reserva legal impede que tais situações sejam reconhecidas para o efeito de permitir o elastério da norma agora prevista no inc. I, § 1º, do art. 148 do Código Penal. Eventual ampliação do conceito de "companheiro" no sentido apontado ensejaria punição mais severa ao réu (ou à ré), vedada em razão da ausência de expressa cominação legal. Incabível falar, aqui, em aplicação de analogia, interpretação extensiva etc.

Por outro lado, caso sobrevenha alguma lei regulando a união estável entre pessoas do mesmo sexo, equiparandoas às relações estáveis entre homem e mulher para efeito de reconhecimento estatal e salvaguarda de direitos, a regra agora em comento passará a ser aplicada em relação a tais situações hoje desprotegidas em face à legislação penal vigente.

Anote-se, por oportuno, que para ter maior coerência sistêmica é preciso que o legislador, entre outras coisas, atualize o art. 61, inc. II, e, do Código Penal, que apenas se refere ao ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.

2.1.2. Sobre o § 1º, inc IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos

A nova lei acrescentou ao § 1º o inc. IV com a seguinte redação: "Se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos". Em razão da nova disposição também será qualificado o crime quando a vítima não contar com 18 (dezoito) anos completos, e a pena será de reclusão, de dois a cinco anos.

Se a privação da liberdade ocorrer no dia do aniversário a qualificadora não incidirá, pois, em tal caso, a vítima não poderá ser considerada menor de dezoito anos.

A modificação é bem vinda, pois, com ela, fica estabelecida a harmonia no sistema de proteção ao menor de 18 (dezoito) anos, em coerência com o disposto na segunda figura do §1º do art. 159 do Código Penal, onde está estabelecido que o crime de extorsão mediante seqüestro será qualificado "se o seqüestrado for menor de dezoito anos".

Em relação a tal forma qualificada no crime do art. 159, ao seu tempo escreveu Nélson Hungria: "A circunstância de ser a vítima menor de 18 anos (isto é, que ainda não completou tal idade) também justifica a agravação especial, porque torna mínima, quando não nenhuma, a possibilidade de eximir-se ao seqüestrado, ao mesmo tempo que é infringida a incolumidade especialmente assegurada à criança e ao adolescente"3.

Considerando que o crime de seqüestro ou cárcere privado é de natureza permanente, em algumas situações a privação da liberdade poderá iniciar quando a vítima for menor de dezoito anos e terminar após ela ter completado tal idade. Ainda será possível, em outra situação, que a privação da liberdade tenha se iniciado antes da nova lei e perdurado para além de seu ingresso no ordenamento.

Em ambas as hipóteses a qualificadora incidirá. Analisando os efeitos do art. 4º do Código Penal em relação ao crime permanente, Damásio de Jesus assim leciona: "Nele, em que o momento consumativo se alonga no tempo sob a dependência da vontade do sujeito ativo, se iniciado sob a influência de uma lei e prolongado sob outra, aplicase esta, mesmo que mais severa. O fundamento de tal solução está em que a cada instante da permanência ocorre a intenção de o agente continuar a prática delituosa. Assim, é irrelevante tenha a conduta seu início...

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