A Legitimidade das Entidades não Sindicais nas Ações Civis Públicas e Ações Civis Coletivas no Processo do Trabalho

AutorMarcos D'Ávila Melo Fernandes
Ocupação do AutorAdvogado. Sócio do escritório ABDALA, CASTILHO & FERNANDES em Brasília.
Páginas314-323

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Introdução

O tema relativo aos direitos metaindividuais tomou grandes dimensões no cenário contemporâneo, caracterizado pela massificação das relações e conflitos intersubjetivos, tornando necessária a criação de mecanismos processuais que pudessem assegurar a efetividade desses direitos.

Foi dessa conjuntura que as ações civis públicas e ações civis coletivas surgiram como instrumento de democratização do acesso à Justiça e para as quais se atribuiu a determinados entes a prerrogativa de litigarem em juízo para defender os direitos e interesses afetos à determinada coletividade de cidadãos.

A questão sempre foi tratada com bastante preocupação no Direito do Trabalho, haja vista que a sua gênese esteve vinculada a abordagens de conceitos coletivos decorrentes das lutas entre classes. Todavia, nada obstante esse contexto, autores e jurisprudência trabalhistas ainda são vacilantes quanto a vários aspectos atinentes à aplicação das ações civis públicas e ações civis coletivas no processo do trabalho.

Essa problemática é intensificada no que tange ao rol de entes legitimados para utilizarem as citadas medidas judiciais. Constantes interpretações têm sido colocadas no sentido de atribuir caráter restritivo à legitimidade processual, conferindo-a aos sindicatos, mas não às associações não sindicais, nada obstante a regra esculpida no art. 5º, XXI, da Constituição Federal. Tal realidade conduz sistematicamente ao impedimento de que determinados grupos minoritários de uma categoria, com menor força política, possam exercer, em juízo, a defesa dos seus direitos,

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como ocorre com os aposentados, citados apenas como exemplo.

A partir dessa perspectiva, a avaliação compreendida nesse trabalho procura analisar o senso comum teórico dos juristas sobre a legitimidade processual, verificando se a prerrogativa conferida aos sindicatos no art. 8º, III, da Constituição Federal e o sistema de unicidade sindical provocam a exegese restritiva a respeito da representação processual em ações coletivas trabalhistas, ou se, ao contrário, o nosso ordenamento jurídico privilegia um sistema pluralístico social, conferindo legitimidade concorrente a vários entes para se valerem das ações coletivas na defesa dos direitos e interesses metaindividuais trabalhistas.

1. A representatividade processual de associações não sindicais no processo do trabalho

A mudança paradigmática da ordem jurídica decorrente da complexidade política, econômica e social no fim do século XIX e início do século XX proporcionou a urbanização dos conflitos, a massificação da atividade social e a convergência de bens e fruições, culminando na migração do conceito individualista de direito para uma acepção coletiva de interesses sociais.

A dimensão clássica de direitos subjetivos e interesses individuais, característicos do Estado Liberal, foram cedendo lugar aos interesses de massa, aqueles comuns a determinado conjunto de pessoas, "que comportam ofensa de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas"1.

Desse contexto, uma nova ordem política e jurídica houve de ser estabelecida para que se amoldasse à realidade social, modificando conceitos jurídicos e o espectro de atuação do Estado e dos particulares, para guinar os interesses sociais ao patamar de direitos verdadeiramente tutelados pela legislação, como bem acentuado por Ada Pellegrini Grinover2.

A sensível mudança relativa ao direito material, por outro lado, provocou a crescente litigiosidade e, consequentemente, o superacionamento do Poder Judiciário para a solução dessas demandas. Tais fatores foram determinantes na chamada "crise do processo individual", haja vista que a legislação processual até então vigente, pautada nos litígios gerados na órbita individualista, mostrou-se inviável para dirimir a contento e de modo célere os conflitos provenientes de uma sociedade de massa.

Com isso, tornou-se imperativa a necessidade de criação de alternativas reais capazes de assegurar a qualidade da prestação jurisdicional, combatendo os obstáculos de acesso à Justiça, a morosidade das soluções judiciais individuais, permitindo a efetivi-dade de fruição dos direitos de massa e imprimindo maior segurança jurídica aos jurisdicionados.

Para essa satisfação, exigiu-se sobremaneira uma atualização da estrutura processual a ensejar um novel sistema judicial de resolução das lides no plano da defesa dos direitos metaindividuais. "De um modelo processual individualista a um modelo social, de esquemas abstratos a esquemas concretos, do plano estático ao plano dinâmico, o processo transformou-se de individual em coletivo"3.

Surgiram dessa conjuntura as ditas "ações cole-tivas", como instrumento de alcance da equidade e da democracia, nas quais se atribuiu a determinados entes a prerrogativa de litigarem em juízo para defender os direitos e interesses afetos à determinada coletividade de cidadãos.

No Direito do Trabalho, que "não nasceu para manter ou conservar os institutos jurídicos, senão para criar garantias aos contratantes típicos, em especial ao trabalhador"4, essa questão sempre foi tomada com bastante preocupação, pois "O embrião histórico e a força genética do Direito do Trabalho apontam e exigem [...] abordagem coletiva dos conceitos e da solução dos conflitos oriundos dos contratos de trabalho"5.

Por isso, a representatividade de grupos constitui aspecto de extrema relevância, principalmente para favorecer o sistema de equilíbrio social numa estrutura constantemente estabelecida pela luta de classes.

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De forma vanguardista, foi a própria Consolidação das Leis do Trabalho a primeira legislação brasileira a disciplinar a tutela dos direitos transindividuais em juízo, prevendo as ações de dissídio coletivo (art. 856 e ss.) e de cumprimento (art. 872), assim como a legitimação dos sindicatos para a representação da categoria de trabalhadores.

Nas décadas de 1970 e 1980 do século passado, quando os movimentos reivindicatórios explodiram no cenário político nacional, o tema relativo à defesa de interesses e direitos metaindividuais ganhou contornos mais relevantes. Contudo, já nesses anos, a CLT, Decreto-lei de 1943, que foi o ponto inicial da normatização processual da defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, passou a apresentar várias lacunas, não mais respondendo com precisão e efetividade aos litígios de ordem cole-tiva. Necessitava-se, então, que a legislação evoluísse para responder aos anseios de uma sociedade contemporânea, dotada ainda mais de relações sociais massificadas.

Então, em 1985, foi editada a Lei de Ação Civil Pública6, "o primeiro diploma a regular, de forma sistemática, a defesa dos direitos supraindividuais em juízo"7. Três anos após, a Constituição de 1988 foi promulgada, solidificando a LACP e prevendo em vários dispositivos a tutela dos direitos coletivos lato sensu, como a representação por meio das associações (art. 5º, XXI), a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), o habeas corpus (art. 5º, LXXIII) e a autorização conferida aos sindicatos de categoria (art. 8º, III) e ao Ministério Público (art. 129).

Porém, as conquistas constitucionais assecuratórias do pluralismo social necessitavam de adaptação a um regime processual mais específico e técnico garantidor dos interesses sociais, que veio como legislação complementar ao texto constituinte: o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90). Esse diploma, além de consolidar as ações coletivas (para além das relações consumeiristas), foi detentor de três grandes méritos: (i) a sistematização do processo coletivo, dando-lhe feição própria e possibilitando a proteção dos interesses dos grupos em todas as esferas do Direito; (ii) a criação de uma nova espécie de ação (ação civil coletiva); (iii) e, por fim, a ampliação da defesa coletiva, agregando terceira espécie de interesses e direitos, os individuais homogêneos8.

Com as ressalvas próprias da nossa realidade jurisdicional, o legislador brasileiro trouxe para a Lei de Ação Civil Pública a figura da class action, enquanto que pelo Código de Defesa do Consumidor "veio a consagração definitiva [...] da categoria das class actions for damages" 9, embora as ações civis coletivas se projetem para além da responsabilidade civil decorrente dos danos causados ao coletivo.

Ada Pellegrini Grinover ainda explana que o processo coletivo brasileiro foi fortemente influenciado pelas Class Actions do direito norte-americano10 regulamentadas na Rule 23 da Federal Rules of Civil Procedure, que trouxe como pressupostos de admissibilidade da class action: a) que fosse impossível reunir todos os integrantes da classe; b) a comunhão de interesses entre os membros nas questões de fato e direito; c) que fosse adequada a representatividade do grupo11.

Além disso, a Rule 23 da Federal Rules of Civil Procedure constituiu como requisitos do prosseguimento da ação (i) a prevalência das questões de fato e de direito comuns sobre as individuais e (ii) a superioridade da tutela coletiva sobre a individual, "em termos de justiça e eficácia da sentença"12.

Ambos requisitos foram incorporados em nosso

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ordenamento sob os auspícios das figuras da possibilidade jurídica do pedido e do interesse de agir/efetividade do processo, respectivamente13.

Todas essas inovações tiveram o intuito de responder às necessidades oriundas da mudança de paradigma evidenciada na questão relativa à tutela de direitos, para avalizar o princípio democrático, "na medida em que o acesso à Justiça revela o adequado grau de proteção dos membros de dada comunidade social"14, propugnando por um ambiente dialético, pautado na simplicidade, eficácia, facilitação, solução homogênea e célere, função e pacificação social e economia no seio processual de...

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