A Legalidade do Aborto Eugênico em Casos de Anencefalia

AutorIve Seidel de Souza Costa
CargoBacharelanda em Direito pela FDV
Páginas169-189

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1. Introdução

A prática do aborto sempre foi tema muito controvertido, tendo sempre provocado muita polêmica e controvérsias em nossa sociedade. É assunto remoto, mas que, de épocas em épocas, ressurge discutindo situações que estremecem os ditames sociais.

A interrupção da gravidez de feto portador da anencefalia fez retornar ao panorama nacional as aventadas discussões acerca da legalidade ou ilegalidade da prática abortiva. Diante da propositura, em 2004, da Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, pelo Conselho Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, a polêmica e as discrepâncias de idéias existentes acerca do tema em análise voltaram a figurar na sociedade brasileira. Questiona-se: deve-se sempre proibir a prática abortiva quando o feto não possuir qualquer viabilidade de vida extra-uterina? Uns optam pela liberalidade, integral e indiscriminada. Outros, fervorosamente, clamam pela tipificação total e incondicional, mormente respaldados pelos apelos religiosos e morais.

Sabe-se que o Direito, contudo, visa à realização do bem comum, que seria o bem individual de cada pessoa, enquanto esta pertence a um todo. Desta forma “o indivíduo colima o bem da comunidade, na medida em que elaPage 170 representa o seu próprio bem”1, segundo as noções da justiça social e solidária. Para tanto, faz-se mister reunir os anseios controvertidos e resolvêlos de forma equilibrada. Haverá o Direito, de fato, bem como a justiça, conseqüentemente, sempre que a sociedade, organizadamente, sopesar seus valores e guiá-los a um fim comum, o qual será essencial para a harmonia do coletivo.

Assim sendo, é necessário que o tema aqui proposto receba um respaldo jurídico equilibrado. Os extremos são perigosos. Deve haver um contrapeso entre as idéias alvitradas, para que nem as tendências religiosas que marcam a personalidade de alguns profissionais de direito, nem os ideais anárquicos, que alguns juristas carregam consigo, se sobreponham indiscriminadamente um ante o outro diante da discussão da prática abortiva, mais precisamente, o aborto em casos de anencefalia. Discutir-se-á a justiça e o Direito, não o moralismo.

O objetivo do presente escrito, desta forma, incide em analisar nomeadamente a prática do aborto em casos de anencefalia sob uma perspectiva jurídica, social e humanitária. Para tanto, buscar-se-á por meio de uma pesquisa teórica e bibliográfica, coletar as informações mais atinentes à matéria e coordená-las em um pensamento que possa servir como sugestão à conjuntura jurídica atual.

Utilizaremos, igualmente, o método dialético e hipotético-dedutivo, na medida em que será necessário contrapor e harmonizar idéias e normas, para que o problema possa ter uma solução juridicamente aceitável.

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2. A problemática do aborto

Primeiramente, a palavra aborto provém do latim ab-ortus, ou seja, “privação do nascimento”2. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), abortamento é “a morte do embrião ou feto antes que seu peso ultrapasse 500g, atingido antes das primeiras 22 semanas de gravidez”3. Por tratar-se de tema polêmico, houve a necessidade de aperfeiçoarem-se os conceitos, utilizando termos menos pejorativos e menos agressivos. O aborto, neste caso, seria a interrupção da gravidez, espontânea ou provocada, de um embrião ou de um feto antes do final de seu desenvolvimento normal, com a conseqüente destruição do produto da concepção.

As mais remotas notícias sobre métodos abortivos datam do século XXVIII a.C, na China, de acordo com Célia Tejo4. No antigo Império Romano, lembra José Maria Marlet5, por considerarem ser o feto parte do corpo da mulher e de suas vísceras, o ato em questão não era considerado crime. Foi o apogeu do Cristianismo que influenciou fortemente as concepções do mundo antigo, por meio das severas punições atribuídas pela Bíblia Sagrada àqueles infiéis que praticassem ou se permitissem praticar o aborto. Desde então, o abortamento foi erigido à categoria de crime na maior parte do mundo.

Assim sendo, a transformação cultural e histórica comparece no quadro causal-explicativo do problema do aborto, na medida em que se questionam tradições, alteram-se costumes, criam-se novos conceitos e normas e leis se modificam ePage 172 propõem. A polêmica é motivada, sobretudo, pelos diversos ângulos de visão existentes e possíveis sobre o assunto.

A questão ético-religiosa, imperativamente, é crucial em relação ao aborto, posto que cruza com as noções de contracepção, um dos temas mais delicados da Igreja, em que são registradas graves posturas de transponibilidade extremamente difícil. Isto se explica pela forte influência que a religião possui e sempre possuiu perante os homens, e pelo posicionamento de subordinação que estes mantêm ante esta Instituição. A Igreja é a responsável pela formação do caráter moral do indivíduo, influenciando cegamente e interferindo na liberdade de reflexões de cada um, convertendo-o sempre em favor de seus dogmas. Tal intocabilidade e incondicionalidade são, no entanto, inaceitas por correntes que se opõem a esse tipo de argumentação. Surge, assim, a disputa, pois os legisladores são suscetíveis às paixões e influências religiosas, éticas e filosóficas, sendo praticamente impossível agirem de forma neutra em suas criações normativas.

Belíssima é a posição da teóloga Ivone Gebara, a favor da descriminalização e legalização do aborto como forma de abrandar a violência contra a vida:

Uma sociedade que não tem condições objetivas de dar emprego, saúde, moradia e escolas é uma sociedade abortiva. [...] Uma sociedade que silencia a responsabilidade dos homens e apenas culpabiliza as mulheres, desrespeita seus corpos e sua história é uma sociedade excludente, sexista e abortiva. [...] Nessa linha de pensamento, concentrar a defesa do inocente somente no feto, é uma maneira de [...] não denunciar a morte de milhares de mulheres inocentes vítimas de um sistema que aliena seus corpos e as pune impiedosamente, culpabilizando-as e impedindo-as de tomar uma decisão ajustada a suas reais condições.

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Em seqüência, sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro se posiciona absolutamente contrário ao aborto, admitir tão só duas exceções: o aborto necessário e o sentimental ou humanitário, admitindo que em algumas situações a proteção à vida do embrião ou do feto não é absoluta, existindo outros bens jurídicos que a ela se sobreponham.

Desta forma, no aborto sentimental, ao se pautar na justificativa de que não é humano exigir da mulher que uma gestação venha a lhe recordar continuamente o sofrimento que a gerou, o bem jurídico a ser defendido é o livre arbítrio dela, sobrepondo-se ao direito à vida. Diante de tal ciência, a juíza Matilde Josefina6 tece críticas em relação ao ordenamento jurídico brasileiro em permitir um aborto do produto de um estupro, e não aceitar aquele em que o feto não terá condições de sobreviver.

3. O aborto eugênico

Esta é uma análise superficial, mas essencial para o entendimento do assunto que pretendemos abordar: a prática do aborto em casos de anencefalia. O grande problema, segundo Célia Tejo7, reside no ponto da disponibilidade da vida humana.

O aborto eugênico, segundo Ricardo Henry Marques Dip8, “é o aborto fundado em indicações eugenésicas, equivalente a dizer, em indicações referentes à qualidade da vida”. A eugenia ocorre quando há comprovação de que o feto nascerá com má-formação congênita. Neste sentido, os casos de anencefalia são, a princípio, sua espécie.

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Francis Galton foi o primeiro a discorrer sobre a eugenia, correlacionando-a a necessidade de haver uma seleção forçosa da raça, pois, segundo ele9

a seleção natural já não se realizava entre os homens porque os governos e as instituições de caridade passaram a proteger os fracos, os doentes, os incapazes, o que levou e ainda leva a decadência da raça humana e ao surgimento de toda a espécie de doenças que contaminaram a sociedade. Para interromper esse declínio, deveria impedir-se a propagação dos degenerados, dos débeis mentais, dos alcoólatras, dos criminosos, em resumo, de todas as pessoas indesejadas na sociedade.

Este princípio pode ser considerado como sendo o pressuposto inspirador para o terrorismo que o alemão Adolf Hitler instaurou no século 20, ao pretender a realização do arianismo, uma raça pura onde apenas os alemães fortes mereceriam sobreviver.

Todavia, ainda hoje algumas características da teoria galtoniana fazem parte do cenário mundial, ainda existindo sociedades que permitam a prática de eliminação dos fetos com má-formação. Entretanto, imperativo ressaltar que a anencefalia não encontra respaldo nessa linha de argumentação. Não seria a anencefalia meramente uma má-formação física, mas a inexistência de um importante órgão do encéfalo, o cérebro, sem o qual a viabilidade existencial extra-uterina fica comprometida. Trata-se de uma má-formação irreversível e gravíssima, em razão da qual o feto não sobreviverá. É condicionante de sobrevida, não podendo, para nós, ser confundida com a discriminação em razão de deformidade física ou mental, posto não se poder falar em viabilidade de vida.

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Em seguida, parece-nos repugnante a idéia de se admitir indiscriminadamente o aborto eugênico. A vida humana não pode ser mensurada segundo critérios indefesos de proveito à coletividade. A má-formação física ou mental não pode servir de justificativa para se sobrepor ao direito, universalmente reconhecido, de que todos possuem gozo a vida. A Declaração Universal dos Direitos do Homem reconheceu em seus artigos 1º e 2º que todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que todos têm capacidade para gozar os direitos e as liberdades sem distinção de raça, cor, sexo, entre...

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