Latitudes e longitudes do venire contra factum proprium nas relações de família

AutorCristiano Chaves de Farias
Páginas139-162

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Ver Nota1

“Toda noite ela diz pra eu não me afastar; Meia-noite ela jura eterno amor; e me aperta pra eu quase sufocar; e me morde com a boca de pavor...”

(Cotidiano, de Chico Buarque de Hollanda)2

1 Lineamentos sobre o abuso do direito

A teoria do abuso do direito somente despontou no inal do Século XIX, como uma das mais relevantes consequências da superação de concepções individualistas, que preconizavam ser o absoluto exercício dos direitos a mais autêntica expressão da liberdade (que, como se vê, seria ilimitada). Concedida a liberdade e a autodeterminação ao ser humano, deveria ele, eventualmente, arcar com a responsabilidade pelas condutas ofensivas ao ordenamento jurídico e, portanto, ilícitas.

Pois bem, a introdução da teoria do abuso do direito no sistema jurídico, mitigando a ideia de que a liberdade seria absoluta, permite vislumbrar uma via

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intermediária entre o permitido e o proibido. É arrefecida a assertiva de que tudo que não é proibido, é permitido no campo das relações privadas.

Construída em sede doutrinária e jurisprudencial, ao longo do Século XX, a teoria do abuso de direito deita nítidas raízes no Direito medieval, identiicada nos atos emulativos (aemulatio) – denominação emprestada àqueles atos praticados pelos proprietários ou vizinhos com o objetivo primordial de prejudicar a terceiros.3

A teoria do abuso do direito resulta, portanto, “de uma concepção relativista dos direitos”, como percebe Orlando Gomes, acrescentando tratar-se de um “conceito amortecedor”, cuja “função precípua é aliviar os choques frequentes entre a lei e a realidade”, tendo como verdadeiro pano de fundo servir como “técnica de reanimação de uma ordem jurídica agonizante, fórmula elástica para reprimir toda ação discrepante de novo sentido que se empresta ao comportamento social”.4Assim, é possível inferir, desde logo, que a caracterização do ato abusivo atrela-se, estreitamente, ao estabelecimento de limites para o exercício dos direitos, sujeitando aquele que ultrapassá-los a correspondentes sanções civis, por ingressar no plano da antijuridicidade.

2 O abuso de direito na ordem civil-constitucional e a sua íntima relação com a boa-fé objetiva

O5 Código Civil de 2002, inovando em relação ao texto do seu antecessor, consagrou, expressamente, a teoria do abuso de direito, em seu art. 187, com nítida inspiração no direito português (art. 334 do Código luso):

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Art.187, Código Civil:

Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu im econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Em sendo assim, o abuso do direito é constatado no instante da violação do elemento axiológico da norma. Instala-se a contrariedade entre o comportamento comissivo ou omissivo do indivíduo e o fundamento valorativo-material do preceito, independentemente do elemento anímico (a culpa).

Prima facie, é natural indagar se seria possível mensurar aprioristicamente o que poderia, ou não, ser considerado um exercício admissível de determinada posição jurídica (exercício admissível de um direito).

Com convicção, parece-nos que a resposta se situa justamente nos termos do art. 187 do Código Civil. Os contornos essenciais da teoria do abuso do direito serão apurados casuisticamente, a partir da parametrização apresentada pela dicção legal: as latitudes e longitudes da boa-fé objetiva (a eticidade das relações jurídicas), dos bons costumes e da função social e econômica dos direitos.

Dessas referências, é certo e incontroverso que a boa-fé objetiva, concretizando a ética que se espera das partes de uma relação jurídica qualquer, consegue iniltrar-se no cerne das relações, com dinâmica e profundidade, permitindo antever a existência de comportamentos juridicamente conforme o Direito, mas ultrapassando o limite ético que se espera de todos.

Em sendo assim, verticalizando ao máximo a compreensão do ato abusivo, nota-se que o seu verdadeiro critério de caracterização está localizado na boa-fé objetiva, uma vez que, em todos os atos geralmente apontados como abusivos, estará presente uma violação ao dever de agir em conformidade com os padrões de lealdade e coniança, decorrentes do conteúdo desse fundamental princípio, independentemente de qualquer propósito de prejudicar. Por isso, conforme a lição de Teresa Negreiros,6boa-fé e abuso do direito complementam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular e, nesta medida, abusivo se consubstanciar quebra de coniança e frustração de legítimas expectativas. Sendo o uso antifuncional do direito aferido objetivamente, com base no conlito entre a sua inalidade própria e a atuação concreta da parte, é forçoso reconhecer que a constatação do abuso passa, obrigatoriamente, pela análise da boa-fé objetiva.

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Nessa linha de ideias, consoante entendimento que já é patrocinado pela melhor jurisprudência, há de se relacionar o abuso de direito à boa-fé objetiva, utilizando-a como parâmetro para deinir os limites de um ato antijurídico valorativamente (abusivo).7

Com mais minúcias: é fundamental reconhecer uma íntima ligação entre a teoria do abuso de direito e a boa-fé objetiva – princípio vetor das relações jurídicas no Brasil (CC, arts. 113 e 422) – porque uma das funções da boa-fé objetiva é, exatamente, limitar o exercício dos direitos subjetivos (e de quaisquer manifestações jurídicas, como um todo, na medida em que não existem direitos insindicáveis), obstando um desequilíbrio na base de sustentação da relação jurídica.

3 O abuso de direito e o código civil (art 187)

No art. 186 do Código Civil se encontra uma cláusula geral de ilicitude baseada no elemento subjetivo (culpa) – praticamente reiterando a fórmula utilizada, outrora, pelo art. 159 do Código Civil de 1916.

Em contrapartida, logo em seguida, no art. 187 enfatiza o legislador a existência de um novo modelo de ilicitude civil, afastada do elemento anímico, lastreada na coniança (critério inalístico-objetiva), ao consagrar uma verdadeira cláusula geral de ilicitude, de índole objetiva. Giza o dispositivo legal:

Art. 187, Código Civil:

Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu im econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

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O legislador, destarte, qualiicou o abuso do direito como um novo tipo de ato ilícito, desatrelado do elemento subjetivo e calcado na afronta à boa-fé objetiva.

O mérito do art. 187 do Código de 2002 é realçar que o critério do abuso do direito não reside no plano psicológico da culpabilidade, mas no desvio do direito de sua inalidade ou função social. Acolhe-se, em concreto, a teoria objetiva inalista.8Como pondera Ruy Rosado de Aguiar Júnior, desaparece o elemento que até hoje a nossa jurisprudência exige para reconhecer a presença do abuso do direito, que seria a intenção de causar o dano, o “sentimento mau” a animar o agente, pois o Código Civil dispensa o elemento subjetivo e se contenta com a culpa social que reside no comportamento excessivo.9

Aqui, coloca-se em relevo outro elemento do ato abusivo – a sua causa –, considerado em sentido teleológico: o direito subjetivo é um direito-função e o seu exercício abusivo motiva a ruptura do equilíbrio dos interesses sociais concorrentes.

No art. 186, a Codiicação Civil deine como ilícita a violação frontal e culposa (culpa em sentido lato) de uma norma jurídica por qualquer pessoa que infrinja os seus pressupostos lógico-formais. É o exemplo do condômino que desfruta da piscina às 23h, conquanto o Regulamento estabeleça que ela somente pode ser utilizada até às 22h. Isto é, de forma apriorística o legislador estabelece uma concreta proibição normativa à prática de uma conduta. O ato ilícito subjetivo, a conduta nasce no campo da ilicitude e ali se mantém, pela violação culposa do texto normativo. Mediante uma qualiicação exclusiva do legislador, o sistema, antecipadamente, reprova os comportamentos hostis à letra da norma.

A outro giro, ao cuidar do abuso do direito, no art. 187, impõe-se uma leitura diversa. Aqui, alguém aparentemente atua no exercício de um direito. O agente não desrespeita a estrutura normativa. Portanto, a sua conduta nasce lícita. Todavia, há uma ofensa à sua valoração, por conta da violação da boa-fé objetiva. O agente, pois, se conduz de forma contrária aos fundamentos mate-riais da norma, por negligenciar o elemento ético que preside a sua adequação ao ordenamento. Em outras palavras, no abuso do direito não há desaio à le-

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galidade estrita, porém à própria legitimidade, posto vulnerado o princípio que a fundamenta.

Ressalta-se, a mais não poder, que o abuso do direito revela a contrariedade da conduta ao elemento axiológico da norma, não obstante o comportamento do agente preencha a morfologia do direito subjetivo que se pretende exercer. Haverá, enim, uma heteronomia na criação do direito: de um lado, o legislador introduz os valores que não podem ser vulnerados; de outro, o magistrado os preencherá na concretude do caso, examinando a proporção entre o exercício do direito e a sua repercussão teleológica.

Volvendo a visão para o texto normativo, não é despiciendo registrar que se mostra infeliz a referência à palavra “direito”, contida na redação do art. 187 do Codex. Isso...

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