A proteção jurídica das identidades desconectadas: um mapa de sua ambivalência

AutorDoglas Cesar Lucas
CargoPossui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ (1998)
Páginas215-236

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I Introdução

Referências ao termo identidade proliferam em todos os lugares. Identidade cultural, nacional, religiosa, étnica, de gênero, profissional, organizacional, etc., sugerem uma ideia de valor positivo, uma qualidade que agrega particularidades e garante a unidade com base numa representação comum. Parece que não se pode acessarao mundo sem recorrera uma identidade, destaca Francesco Remotti (2010). Ela sugere ser, no contexto contemporâneo de inseguranças, uma ilha de proteção, uma promessa de certeza e de estabilidade.

Para isso a identidade depende de certa obsessão metafísica, de uma ligação abstrata a algo que, para além das particularidades, garante a persecução de um projeto compartilhado. É como se somente na unidade dessa representação as particularidades adquirissem sentido. Mas esse apelo ao semelhante, ao igual, esconde um jogo ambivalente com o seu oposto, com a sua diferença que é condição mesma de possibilidade para a identidade. Definitivamente a identidade só é, em si, um evento possível na paradoxal relação com o outro, com o estranho, com a sua diferença (RESTA, 2011). A criação das condições de igualdade dentro da comunidade são, também, as condições de diferença para fora dela. A amizade entre iguais, nesse sentido, pressupõe uma desconfiança entre os diferentes. Os de dentro e os de fora se institucionalizam. Para se incluir os primeiros se faz necessário excluir os segundos.

Nesse jogo de ambivalências e obsessão, a identidade transparece sua face velada e perigosa. Funciona como mito, como promessa nem sempre realizável. Transforma ilusão e aspiração em realidade (BAYART, 1996). Separa para unir. Inventa ligações artificiais que impedem o reconhecimento dos traços de humanidade comum em cada particularidade, alimentando diferenças excludentes. Por isso, quem se coloca contra nossa identidade parece se transformar em nosso inimigo. O "nós" identitário, ao se contrapor ao "outro" e a sua diferença, constrói os limites do "nosso" e do seu entorno. Sua estabilidade cobra o preço da instabilidade e a sua continuidade o da descontinuidade. A identidade é um ser que é em si e que também o é por não ser outra coisa. A negação de seu oposto é a condição de sua unidade. Enfim, toda identidade tem "como margem um excesso", tem sempre um algo mais (HALL, 2003).

Esse texto pretende demostrar que a identidade, diferentemente de suas formas tradicionais de identificação, tem se estratificado, se tornado múltipla, reclamando

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reconhecimento jurídico para as suas diferentes formas de produção de pertença. O processo de fragmentação das identidades produz uma espécie de subjetividade flexível, decorrente da vivência entrelaçada de diferentes culturas dentro de um mesmo indivíduo que, na composição de sua vida, transita por uma diversidade de grupos sociais com práticas diferenciadas e até divergentes. Enfim, a essência identitária desmoronou e em seu lugar muitas identidades cambiantes e diversas convivem num mesmo espaço, em espaços diferentes, produzindo estranhamento e reafirmando suas unidades. O texto é dedicado a questão das identidades desconectadas e a forma como o direito paradoxalmente pretende normatizá-las.

1. O ser como um traço da identidade nas sociedades pré-modernas

A identidade nasceu, segundo Eligio Resta (1997), para indicar uma semelhança, para destacar aquelas características específicas a serem replicadas. Estava associada à ideia de essência, à possibilidade de uma representação pura de mais do mesmo. Era tida como algo em si, como aquilo que não mudava com o tempo e que por isso estava para além da história, para além da tradição, fora da interferência humana. O "ser é", proferiu Parmênides (1996, p. 118), simplesmente. Ao contrário do mobilismo de Heráclito, que defendia uma natureza mutável do ser (pois o "Ser-é" e "Não-é", ao mesmo tempo; é cheio e vazio), Parmênides sustentava a tese de que o ser em si é imóvel, tem uma essência e uma permanência imutável, sendo o movimento apenas uma falsa percepção dos sentidos humanos. Nesse sentido, idêntico é aquilo que não se altera, que permanece igual, apesar das mudanças de sua totalidade. A identidade é um a priori; não é alcançada pelo tempo e tem uma essência em si. "Parménides disse que el ser tiene su lugar en una identidad" (HEIDEGGER, 1990, p.69). O ser, nesse caso, é um rasgo da própria identidade, destaca Heidegger. Ela é uma manifestação interna, enquanto a alteridade é externa. A identidade se confunde com sua própria sustância que não se altera no tempo e no espaço. Sua máxima é, pois, formulada da seguinte forma: A=Ae A? não -A, na qual se percebe a notória exclusão da alteridade. O outro não faz parte do ser e a diferença (alteridade) não está contida na ideia de identidade.

Ao sustentar uma ordem cósmica imutável e a absoluta verdade do mundo das ideias, em contraposição as imperfeições do mundo sensível, Platão reproduz teoricamente a imutabilidade do ser. A grande preocupação do filósofo é a busca pela verdade. Para ele o saber absoluto somente pode estar presente nas ideias e jamais no mundo sensível. Ideia representa uma essência, significa a coisa mesma em sua dimensão mais autêntica; carrega um conceito universal, uma base a priori (transcendental divina que reside na alma, a qual faz a mediação com o mundo sensível), é o fundamento do ser e a finalidade que aparece como um bem, como um valor (HIRSCHBERGER, 1995). A percepção alcançada pelos sentidos é insegura, uma vez que é sempre mutável. Assim, por exemplo, na visão platônica um Estado bem ordenado e justo é aquele no qual as pessoas não fazem o que querem, mas o que devem fazer segundo sua finalidade, assumindo sua função específica dentro da totalidade. Essa é a norma de justiça: harmonizar as diferenças numa unidade, seja ela o indivíduo ou a cidade. Nessa ordem das coisas cada um ocupa o seu lugar de acordo

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com suas habilidades naturais, sendo a individualidade algo inexistente. A identidade, pois, não é representada ou questionada como um atributo da consciência reflexiva, sugerindo apenas uma espécie de repetição de uma posição no mundo de acordo com determinada preparação e capacidades em uma sociedade bem ordenada.

Aristóteles, por sua vez, tratou da identidade em termos lógicos. Para o filósofo de Estagira a identidade é uma relação entre substâncias iguais, entre elementos que apresentam a mesma característica, independentemente da coisa em que tais substâncias se encontrem. Não interessa a coisa em si, a sua diferença, mas sim as substâncias que conformam o ser em sua generalidade ou especificidade. Quando refere que a identidade é a igualdade entre as mesmas substâncias presentes em coisas diferentes, está anunciando uma relação de igualdade entre as especificidades que a diferem do gênero. A diferença específica do ser está na substância e não na coisa em si. Assim, apenas indiretamente a diferença importa ao conceito de identidade por ele trabalhado, sobretudo porque a identidade é em si mesma e negação em relação àquilo que não é (HÖFFE, 2008).

Aplicada aos seres humanos, a ontologia das essências propugna uma espécie de singularidade essencial de cada ser humano e uma pertença também essencial que não depende do tempo e dos acontecimentos históricos. É um atributo herdado desde o nascimento ou desenvolvido como uma habilidade que manifesta a sua própria condição inevitável (DUBAR, 2007). Nesse sentido, o ser é, em si, o resultado das inscrições naturais que definem sua posição no mundo, seus atributos, sua classe social, sua finalidade. Não se pode dizer, nesse caso, que a identidade pressuponha ou esteja baseada na ideia de reconhecimento mútuo. Tudo se limita ao papel desempenhado pela experiência coletiva, comunitária e pelos simbolismos pré-programados, e a consciência reflexiva de si mesmo, ao menos como conhecemos desde a modernidade, é ignorada (RICOEUR, 2006). A identidade tem uma força replicadora na sociedade pré-moderna. Sua missão se realiza na tarefa de identificar-se com o mesmo, sem recorrer a um mecanismo próprio de diferenciação e de identificação.

Sem um ambiente que prestigiasse a subjetividade e a individualidade como vetores determinantes do ser, a identidade não tinha como assumir traços de diferenciação. A identidade como autoconsciência é um acontecimento moderno. Antes deste período ela se caracteriza como uma forma totalizante e natural de ligar o homem a lugares pré-determinados. No mundo antigo essa relação de identidade interna é uma decorrência da própria condição da vida feliz no interior da Polis. O individuo depende da organização coletiva para existir. Ele não se individualiza. Ele é, em si mesmo, parte da cidade, uma vez que não é possível viver fora dela. Não se pode prescindir da vida comunitária como espaço natural de sobrevivência individual. O indivíduo não é em sua particularidade. Ele somente é numa relação com o todo. Nesse período, descreve Norbert Elias (1994, p. 131), "o fato de pertencer a uma família, tribo ou Estado desempenhava um papel inalienável na imagem do homem". Não se conhece, neste paradigma identitário, uma identidade de tipo funcional. A identidade antiga era garantida por uma espécie de continuidade contínua. Ela reproduzia mais do mesmo sem ter que apelar para o diferente. Tem uma essência, por isso não tem necessidade do jogo ambivalente com seu oposto. As alianças e as...

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