Argumentação Jurídica e Direitos Fundamentais

AutorMarcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Páginas227-236

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1. Para uma crítica à classificação histórica dos direitos fundamentais em "gerações de direitos"

Tornou-se tradicional a classificação histórica dos direitos fundamentais em os de primeira geração (individuais), segunda (sociais), terceira (coletivos) ou até mesmo quarta geração (difusos), ainda que admitida, entre autores diversos, com alguma modificação. Assim, ao reafirmar a tese da historicidade dos direitos, Norberto Bobbio defendia que os direitos humanos, por mais que a eles se possa atribuir o caráter de fundamentais, surgem "em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas"1. Sintetizando magistralmente a tese histórica das gerações de direitos, a partir da relação entre esses e o Estado, Bobbio afirmava:

"... os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem - que acompanha inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens - ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. Às primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou ação positiva do Estado. Embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre - com relação aos poderes constituídos - apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios. Nos direitos de terceira e de quarta geração, podem existir direitos tanto de uma quanto de outra espécie."2 (grifos nossos)

Já Paulo Bonavides3, seguindo Karel Vasak, vale-se da famosa divisa da Revolução Francesa para também utilizar as expressões "direitos de liberdade" (primeira geração), "direitos de igualdade" (segunda geração) e "direitos de fraternidade ou de solidariedade" (terceira geração). E a essas três "gerações", sucessivas e cumulativas, acrescenta uma quarta, como sendo o

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cume de um processo histórico de universalização concreta dos direitos fundamentais, e que assumiria as gerações anteriores como "dimensões" suas:

"Força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade. Ao contrário, os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à fraternidade, permanecem eficazes, são infraestruturais, formam a pirâmide cujo ápice é o direito à democracia."4

A afirmação segundo a qual os direitos de primeira, de segunda e de terceira gerações devem ser, nesses termos, considerados como dimensões para os direitos de quarta geração, os direitos à democracia, possui, com certeza, uma preocupação sociológica e, assim, ultrapassa a perspectiva meramente cronológica, posto que já assume a noção de "interdependência entre os direitos fundamentais"5, no que se refere ao seu exercício efetivo e concreto:

"Os direitos da quarta geração não somente culminam a objetividade dos direitos das duas gerações antecedentes como absorvem - sem, todavia, removê-los - a subjetividade dos direitos individuais, a saber, os direitos da primeira geração. Tais direitos sobrevivem, e não apenas sobrevivem, senão que ficam opulentados em sua dimensão principal, objetiva e axiológica, podendo, doravante, irradiar-se com a mais subida eficácia normativa a todos os direitos da sociedade e do ordenamento jurídico.

"Daqui se pode, assim, partir para a asserção de que os direitos da segunda, da terceira e da quarta gerações não se interpretam, concretizam-se. É na esteira dessa concretização que reside o futuro da globalização política, o seu princípio de legitimidade, a força incorporadora de seus valores de libertação."6

Como classificação histórica, é discutível o quanto a teoria dos direitos em gerações pode contribuir do ponto de vista sistemático da aplicação adequada dos dispositivos que consagram esses direitos, nas chamadas "situações de concorrência ou de colisão", principalmente quando se trata de direitos considerados como de gerações diferentes7. Isso porque, de uma perspectiva histórica pareceria, em princípio, inevitável chegar à conclusão de Bobbio, segundo a qual

"... os direitos do homem constituem uma categoria heterogênea (...) a categoria em seu conjunto passou a conter direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser concebida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. Pode-se fantasiar sobre uma sociedade ao mesmo tempo livre e justa, na qual são global e simultaneamente realizados os direitos de liberdade e os direitos sociais; as sociedades reais, que temos diante de nós, são mais livres na medida em que menos justas e mais justas na medida em que menos livres (...) O que podemos esperar do desenvolvimento dos dois tipos de regime não é uma síntese definitiva, mas, no máximo, um compromisso (ou seja, uma síntese, mas provisória). Mais uma vez, porém, coloca-se a questão: quais serão os critérios de avaliação com base nos quais se terá compromisso? (...) Através da proclamação dos direitos do homem, fizemos emergir os valores fundamentais da civilização humana até o presente. Isso é verdade. Mas os valores últimos são antinômicos: e esse é o problema."8

Todavia, cabe considerar que, de um ponto de vista hermenêutico, a análise histórica, que procura explicitar os contextos sociais subjacentes à prática jurídica, necessitaria traduzir-se teoricamente a fim de garantir algum suporte à dogmática jurídica9. Segundo Habermas:

"A Teoria do Direito e a História do Direito cultivam uma ulterior objetivação da compreensão dos textos legais e de sistemas de regras, se bem que em direções opostas. Enquanto a Teoria do Direito (...) mediante uma abstração generalizadora exige distanciamento em face do trabalho de interpretação referido ao caso particular, em que consiste a prática das decisões judiciais, mas sem ter de abandonar a perspectiva do participante como tal, o olhar objetivante do historiador se dirige aos contextos

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sociais em que está inserido o Direito como sistema de ação e dos que se nutrem também os supostos básicos que implicitamente acompanham o exercício da jurisdição e a dogmática contemporânea do Direito."10

Em outros termos, a perspectiva teórico-jurídica busca tratar de forma abstrata e sistemática, todavia interna ao Direito, o problema da produção e da aplicação jurídicas, o que levaria a uma diferenciação das questões jurídicas em face do seu ambiente social. Não bastaria, pois, aos níveis operacionais da produção e da aplicação do Direito uma análise da realidade histórica que reduzisse as decisões jurídicas do presente a uma vinculação estrita com as decisões tomadas no passado, posto que o Direito não poderia ser visto tão somente como uma questão de fato ou de convenção explícita, como bem afirma Ronald Dworkin11. Quer do ponto de vista de uma produção legislativa politicamente consistente, quer do ponto de vista jurisdicional em que "cada caso é um caso", a manutenção da coerência interna ou da integridade do Direito pressuporia uma justificação que ultrapassa no presente as razões concretas articuladas no passado, a cada nova decisão12.

De toda sorte, de um ponto de vista reconstrutivo, a tensão entre as análises histórica e teórica, entre a perspectiva empírica de um observador/historiador, que buscaria explicar os contextos histórico-sociais subjacentes à prática jurídica, e a perspectiva normativa de um operador/teórico-pragmático, que garantiria no máximo uma "metodologia sem métodos"13, pode ter reduzida a sua complexidade através da noção de "paradigma jurídico"14. Segundo Jürgen Habermas:

As ordens jurídicas concretas representam não só distintas variantes da realização dos mesmos direitos e princípios; nelas se refletem também paradigmas jurídicos distintos. Entendo como tais as ideias típicas e exemplares de uma comunidade jurídica acerca da questão de como se pode realizar o sistema dos direitos e os princípios do Estado de Direito no contexto efetivamente percebido da sociedade dada em cada caso. Um paradigma jurídico explica, com ajuda de um modelo da sociedade contemporânea, de que modo devem entender-se e "manejar-se" os princípios do Estado de Direito e dos direitos fundamentais, para que possam cumprir no contexto dado as funções que normativamente lhes atribui. Um ‘modelo social do Direito’ (WIEACKER) representa algo assim como a teoria implícita que da sociedade tem o sistema jurídico, quer dizer, a imagem que este se faz do seu ambiente social. O paradigma jurídico indica então como no marco de tal modelo podem entender-se e realizar-se os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito.15

Para isso, é...

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