O julgamento da ADI Nº 3510 sob a perspectiva argumentativa

AutorClaudia Rosane Roesler - Gabriel Rübinger-Betti
CargoProfessora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - Graduando em Direito, Universidade de Brasília
Páginas663-694

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IssN Eletrônico 2175-0491

O JULGAMENTO DA ADI Nº 3510 SOB A PERSPECTIVA

ARGUMENTATIVA1The judgment of case ADI 3510 of the Brazilian Supreme Court from an argumentative perspective

el juicio de la adi nº 3510 desde un punto de vista argumentativo

Claudia Rosane Roesler 2

Gabriel Rübinger-Betti3 1

B ( ), E 2013/2014, u fª. D . u , p j p qu “ u Ju : ‘E ’ Ju D õ Ju T u Sup B ”. 2 f u D B , D u

T G D p S u – S , B u qu N q.
3 G u D , B . E-mail: u . @ .

Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 19 - n. 3 - set-dez 2014

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Resumo: O presente trabalho tem como objetivo avaliar a argumentação desenvolvida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 3510. O ponto central da discussão do caso é a interpretação do artigo 5º da Lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança), que autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias. Após o exame dos votos segundo o esquema de Stephen Toulmin e a análise à luz da teoria de Neil MacCormick, pode-se dizer que os votos são apropriadamente fundamentados do ponto de vista individual. Porém, o julgamento apresenta inconsistências internas, demonstrando certa discordância quanto aos fundamentos jurídicos, mesmo entre Ministros e Ministras que votaram em sentido igual. Portanto, considera-se que tal decisão não foi a mais adequada diante dos ideais de um Estado Democrático de Direito e da exigência de fundamentação das decisões judiciais a eles inerente.

Palavras-chave: ADI nº 3510. Lei de Biossegurança. Argumentação Jurídica. Estado Democrático de Direito.

Abstract: This study analyzes the argumentation developed by the Brazilian Supreme court in the judgment of the case entitled “Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510” (ADI 3510). The central point in the discussion of this case is the interpretation of Article 5 of the Brazilian Biosafety Law (Law no. 11,105 of March 24, 2005), which authorized research with embryonic stem cells. After examining the votes using Stephen Toulmin’s layout, and analyzing in light of the theory of Neil McCormick, it can be said that the votes are correctly grounded from the individual point of view. Nevertheless, the judgment as a whole presents internal inconsistencies, demonstrating a certain disagreement as to the legal grounds, even among the Ministers who voted the same way. We conclude that this decision was not the most appropriate, in view of the ideals of a Democratic Sate of Law, and the requirement to state the grounds inherent to it.

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Keywords: ADI nº 3510. Brazilian Biosafety Law. Legal Argumentation. Rule of Law.

Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo evaluar la argumentación desarrollada por el Supremo Tribunal Federal en el juicio de la ADI (Acción Directa de Inconstitucionalidad) nº 3510. El punto central de la discusión del caso es la inter-pretación del artículo 5º de la Ley nº 11.105/05 (Ley de Bioseguridad), que autoriza la investigación con células tronco embrionarias. Tras el examen de los votos según el esquema de Stephen Toulmin y el análisis a la luz de la teoría de Neil MacCormick, se puede decir que los votos están apropiadamente fundamentados desde el punto de vista individual. Sin embargo, el juicio presenta inconsistencias internas, demostrando cierta discordancia en relación a los fundamentos jurídicos, incluso entre Ministros y Ministras que votaron en el mismo sentido. Por lo tanto, se considera que tal decisión no fue la más adecuada frente a los ideales de un Estado Democrático de Derecho y a la exigencia de fundamentación de las decisiones judiciales inherente a ellos.

Palabras clave: ADI nº 3510. Ley de Bioseguridad. Argumentación Jurídica. Estado Democrático de Derecho.

Estado de Direito pode ser entendido como um ideal político essencialmente procedimental, que se concretiza de forma mais ou menos intensa a depender do funcionamento das instituições desse sistema.4Os tribunais e as leis se aproximam desse ideal no desenrolar da prática jurídica, de modo que a argumentação desempenha um papel central nesse processo.

Ao expor as razões que motivaram a decisão, o juiz consagra a própria ordem democrática, pois sua posição no caso concreto se torna passível de crítica.

4 W LD ON, J y. Th p h u f L w. : HeinOnline 43 Ga. L. Rev. 1

(2008-2009), p. 56 61.

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Introdução

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Isso garante aos cidadãos um mínimo de igualdade diante da lei e da limitação do poder jurisdicional, pois se as leis e as decisões possuíssem apenas um “simulacro de inteligibilidade”, qualquer coisa poderia acontecer, dada a natural indeterminação dos textos legais.5A exigência da fundamentação das decisões judiciais é direito assegurado pela Constituição Federal (art. 93, IX), sob pena de nulidade, de forma que a própria legitimidade da decisão judicial depende da justificação da racionalidade da decisão.6Dessa forma, a atividade argumentativa desempenha um papel central em um estado democrático. Na medida em que os juízes fundamentam suas decisões expondo seus argumentos, estas se tornam passíveis de crítica. Mesmo a decisão que aparente ser parcial deve se fundamentar segundo regras e princípios de um sistema jurídico, cuja aplicação pode ser questionada.

O presente trabalho tem como objetivo avaliar a argumentação desenvolvida pelos ministros no julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 3510, que tratava da pesquisa com células-tronco embrionárias. Nosso objetivo é discutir, à luz das teorias argumentativas, se os argumentos levantados no caso podem ser considerados racionalmente persuasivos - ou seja, se poderiam convencer um hipotético espectador imparcial a tomar as mesmas decisões, sobre as mesmas circunstâncias.

o contexto da LeI nº 3510/05 e a adI nº 3510

As células-tronco embrionárias são células retiradas do blastocisto (embrião em estado de pré-implantação) e que são capazes de se diferenciar em outras células do organismo, como células musculares ou ósseas. Ao contrário das células-tronco adultas, as células-tronco embrionárias são totipotentes - podem se transformar em células de qualquer tecido presente no organismo adulto. Por possuírem essa capacidade extraordinária de diferenciação, as pesquisas com células-tronco são promissoras.

5 M O M K, N . Retórica e Estado de Direito. T u Hu M .

J : E , 2008, p. 2.
6 M NON , Lu z Gu h . Teoria Geral do Processo. 3. . S u : E

T u , 2008, p. 108.

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Quando se extrai a célula-tronco embrionária, no entanto, ocorre a destruição do embrião, o que levanta diversas questões polêmicas do ponto de vista ético, já que o embrião é considerado por muitos o início da vida humana. Justamente por envolver tantos aspectos - jurídicos, morais, religiosos -, o problema é de grande complexidade.

A autorização das pesquisas com células-tronco embrionárias tem início com a Lei nº 11.105/05, que no ordenamento jurídico brasileiro surge como uma tentativa de reordenar as várias normas em vigor que tratavam da biossegurança, como a Lei nº 8.974/95 e a Medida Provisória nº 2.191-9/01, delimitando as normas de segurança e os mecanismos de fiscalização envolvendo organismos geneticamente modificados (OGMs). A Lei remonta ao PL 2401/2003, em cuja justificação se buscava, além do já citado, “atender, em sua plenitude, o Princípio da Precaução, definido em vários instrumentos internacionais dos quais o Brasil é signatário e presente no art. 225 da Constituição Federal, tornando efetiva a ação do Estado na proteção da saúde humana e do meio ambiente no trato dessa matéria polêmica internacionalmente”.7O substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados vedava qualquer manipulação genética ou manejo de organismos in vitro, inclusive a manipulação genética de células germinais humanas. A autorização das pesquisas com célulastronco embrionárias surgiu apenas quando a proposta passou pela Comissão de Educação no Senado Federal, que acrescentou o dispositivo e tomou a redação final no tocante ao assunto quando tramitou na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, de Assuntos Econômicos e Assuntos Sociais. Portanto, é interessante notar que ainda no Congresso Federal o tema despertou várias divergências.

Essa controvérsia norteou boa parte dos debates legislativos e se intensificou na sociedade após a sanção da Lei, em 25 de março de 2005. Pouco mais de dois meses após a sanção presidencial, o Procurador Geral da República ingressou com uma Ação Direita de Inconstitucionalidade, visando impugnar o art. 5º da Lei, que versava sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias:

7 B S L. N . PL 2401/2003. T p j

L p Ex u , u u 2003, p. 15.

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Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I – sejam embriões inviáveis; ou

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

§ 3º É...

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