O Julgamento da ADPF n. 54: uma reflexão à luz de Ronald Dworkin

AutorMaria Eugenia Bunchaft
CargoDoutora e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio
Páginas155-188
O Julgamento da ADPF n. 54: uma reflexão à luz
de Ronald Dworkin
Maria Eugenia Bunchaft1
Resumo: A Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental n. 54 foi ajuizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde no STF que, por oito votos a dois, jul-
gou procedente o pedido, declarando a incons-
titucionalidade da interpretação segundo a qual
a interrupção da gravidez de feto anencéfalo
seria tipificada no Código Penal. Defendendo
uma leitura moral do ordenamento jurídico,
Dworkin sustenta que a interpretação de princí-
pios substantivos deve considerar, não apenas a
Constituição como um todo, mas também a his-
tória, as tradições e as práticas constitucionais.
Nesse sentido, pretende-se articular a temática
da ADPF n. 54 à perspectiva substancialista
delineada por Dworkin, cuja proposta de leitura
moral pode ser um referencial teórico importan-
te para compreender formas de judicialização
voltadas para a proteção de direitos de gestan-
tes de fetos anencéfalos. Pretende-se demons-
trar que, no julgamento da ADPF no 54, o STF
conseguiu justificar de forma coerente os con-
ceitos que integram o domínio do valor, articu-
lando-os de uma maneira que um complemen-
te o sentido do outro, inexistindo conflito.
Palavras-chave: Anencefalia. STF. Dworkin.
Abstract: The Allegation of Unconstitutionality
number 54 was filed in the Brazilian Supreme
Court by the National Confederation of Health
Workers, and the Supreme Court, by eight vo-
tes to two, upheld the application, declaring the
unconstitutionality of the interpretation that the
interruption of pregnancy of anencephalic fetus
would be typified in the Criminal Code. Advoca-
ting a moral reading of the law, Dworkin argues
that the interpretation of substantive principles
should consider not only the Constitution as a
whole, but also the history, traditions and constitu-
tional practices. Therefore, we intend to articulate
the theme of the Allegation of Unconstitutiona-
lity number 54 with the Dworkin’s substantialist
perspective, whose proposal for a moral reading
can be an important theoretical framework for un-
derstanding forms of judicialization aimed at pro-
tecting the rights of women with pregnancy of an
anencephalic fetus. We intend to demonstrate that,
in the judgment of the Allegation of Unconstitu-
tionality number 54, the Brazilian Supreme Court
was able to consistently justify the concepts that
comprise the field of value, articulating them in
a way that one direction complements the other,
therefore eliminating the conflict.
Key words: Anencephaly. Brazilian Supreme
Court. Dworkin.
1 Doutora e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
Professora e Pesquisadora do Departamento de Direito do Centro Universitário de Volta
Redonda (UNIFOA). E-mail: mbunchaft@ig.com.br.
Recebido em: 07/05/2012.
Revisado em: 16/08/2012.
Aprovado em: 27/09/2012.
Doi: http://dx.doi.org/10.5007/2177-7055.2012v33n65p155
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1 Introdução
De início, é premente lecionar que um dos momentos mais rele-
vantes da trajetória jurídico-institucional do STF foi o julgamento da Ar-
guição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, ajuizada pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). O Plenário,
por oito votos a dois, julgou procedente o pedido formulado na ADPF n..
54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual
a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos
artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, prevalecendo o
voto do Min. Relator, Marco Aurélio Mello, vencidos os Ministros César
Peluso e Ricardo Lewandowski.
Desse modo, a anencefalia caracteriza-se como uma má-formação
congênita, ou seja, como uma anomalia que consiste na ausência de abó-
bada craniana, com ausência dos hemisférios cerebrais ou estes, se pre-
sentes, são representados por massas pequenas que repousam na base.
Trata-se de uma alteração decorrente de falha no início do desenvolvi-
mento embrionário e do mecanismo de fechamento do tubo neural. A
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde afirma em nota pré-
via serem distintas as situações de antecipação terapêutica e a do aborto,
tendo em vista que este último pressupõe potencialidade de vida extrau-
terina do feto. Resgata princípios constitucionais relativos à dignidade da
pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade,
bem como o do direito à saúde.
Outrossim, adotando uma perspectiva eminentemente substancialis-
ta, Dworkin sustenta que a interpretação racionalmente construída a par-
tir de princípios substantivos deve considerar, não apenas a Constituição
como um todo, mas também a história, as tradições e as práticas constitu-
cionais. Sob essa ótica, no julgamento da ADPF n.. 54, o Plenário do STF
partiu de uma leitura moral do ordenamento jurídico e de uma perspectiva
reconstrutiva que, superando autocompreensões assimétricas de mundo,
resguardou a independência ética de mulheres e consagrou de forma nor-
mativamente sensível o ideal de integridade, tão caro a Dworkin.
Maria Eugenia Bunchaft
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Nesse sentido, pretende-se articular a temática da ADPF n.. 54 para
a perspectiva substancialista delineada por Dworkin, cuja proposta de lei-
tura moral pode ser um referencial teórico importante para compreender
formas de judicialização voltadas para a proteção de direitos de gestan-
tes de fetos anencéfalos. Mas, por qual motivo se faz imprescindível para
a compreensão da teoria do valor delineada por Dworkin na análise da
temática da anencefalia? É necessária, porque a temática da anencefalia
enseja um debate sobre a concepção de justiça, dignidade da pessoa hu-
mana, democracia, igualdade e liberdade na sua argumentação, que são
conceitos interpretativos pertencentes ao domínio do valor.
No ensejo, um dos assuntos mais polêmicos envolvido no pronun-
ciamento dos Ministros foi o voto divergente do Ministro Ricardo Lewan-
dowski sobre os limites de atuação do STF; que deveria restringir sua atu-
ação ao papel de legislador negativo, extirpando do ordenamento jurídico
as normas constitucionais, e não como legislador positivo, criando uma
nova causa de exclusão da ilicitude que não foi prevista pelo Código Pe-
nal. A principal crítica decorre do caráter contramajoritário da jurisdição
constitucional e sua inevitável liberdade interpretativa.
Nessa configuração filosófica, pretende-se investigar se tal crítica
pode ser minimizada quando se consideram contextos fáticos nos quais
a expansão da atuação judicial for, não apenas imprescindível para res-
guardar a independência ética de grupos minoritários estigmatizados, mas
também para consagrar uma Interpretação conforme a Constituição juri-
dicamente sensível à ideia de unificação e de harmonia entre os valores.
Ideia esta defendida por Dworkin em Justice for Hedgehogs (2011). Nes-
sa obra, Dworkin analisa a temática da oposição entre monismo e plura-
lismo de valores. Portanto, como afirma Berlin em seu livro, The Hed-
gehogs and the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History, “[...] a raposa
sabe muitas coisas, mas o porco-espinho sabe apenas uma e grandiosa
coisa [...]”, afirma o poeta grego Arquíloco. (BERLIN, 1993, p. 435)
Não obstante toda a perspicácia da raposa e a possibilidade de de-
senvolver estratégias variadas para capturar o ouriço, no fim, a raposa
termina superada pela mesma artimanha de sempre: o ouriço transforma-
-se em uma bola com espinhos apontando para direções diversas, invia-

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