Os juizados especiais cíveis de defesa do consumidor: a ampliação dos direitos no estado democrático

AutorSaskya Miranda Lopes - Ruthy Nadia Laniado
CargoProfessora Assistente da Universidade Estadual do Piauí. Advogada. - Professora Associada do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadora do CNPQ
Páginas359-392

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Introdução

Os direitos do consumidor representam uma inovação e um avanço na relação entre Estado e cidadão e na ação desse último na esfera pública por meio das demandas que encaminha aos Juizados Especiais Cíveis do Consumidor no Brasil. A relevância desse tema está em reconhecer como interesses individuais da vida cotidiana e lutas políticas de diversas ordens caminham pari passu na participação mais ativa do cidadão para a democratização da sociedade, inclusive no que diz respeito às relações entre indivíduo e mercado em tempos de globalização. A Constituição de 1988 veio a consagrar a multiplicação dos espaços de participação e a transformação de valores de cultura política na vivência das relações de consumo dos indivíduos e no apoio do Estado ao cidadão (direitos consumeristas tutelados).

O direito do consumidor tem um caráter multifacetado, objeto de debates jurídicos e políticos, pois ele se move na fronteira entre o direito individual e o coletivo, conforme o tipo de queixa do cidadão. Seu aspecto mais contundente para a inovação política e da cidadania é expressar um direito que atende a necessidades individuais, mas que também afetam coletivamente os indivíduosclientes que estão na mesma condição de subordinação às condições do mercado econômico ou de serviços.

A Bahia foi precursora em criar uma instância da justiça para a defesa das pequenas causas e do consumidor em 1985 e tomou a dianteira para a implementação dos Juizados Especiais Cíveis de Defesa do Consumidor entre os estados brasileiros, em 1992. Desde então, após mudanças legais e organizacionais, os juizados específicos para a defesa do consumidor tomaram corpo e se institucionalizaram no Estado. São eles, o Primeiro Juizado Especial Cível de Defesa do Consumidor (do bairro dos Barris) e o Segundo Juizado Especial Cível de Defesa do Consumidor (do bairro de Brotas), que formam o recorte empírico deste trabalho.

A pesquisa realizada em 2006 e 2007 para apoiar este estudo de caso objetivou conhecer a visão dos juízes que lidam com o direito do consumidor a partir do microssistema dos juizados especiais do Estado; também investigou o próprio desempenho

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desses juizados no atendimento das demandas dos consumidores no período 2000-2005. Isto é, estudou o olhar daqueles que atuam na implementação das normas constitucionais que determinam a garantia desse direito inovador para o cidadão, ao diagnosticar as demandas e os processos iniciados no âmbito dos juizados. Os dados informam também a visão dos juízes sobre as condições reais desse tipo de assistência jurídica, ao considerar questões de eficiência, efetividade, reconhecimento dos direitos, produção de novos direitos e valores de cultura política que resultam dessa relação entre Estado e cidadão.

1. O surgimento dos Juizados Especiais

É na história do sistema jurídico e democrático norteamericano que se pode traçar a evolução histórica de espaços jurídicos que vieram a promover direitos confluentes com os do consumidor já em décadas mais recentes. A ideia de criar cortes com jurisdição especial e limitada (limited jurisdiction) às pequenas causas foi muito bem aceita e adotada em muitas cidades durante o período de 1913 até 1934, mas foi em 1913, nos Estados Unidos da América, que surgiu o primeiro órgão jurisdicional com atribuição especial para cuidar das pequenas causas, conhecido como poor man’s court (FRIEDMAN, 1984).

Por um lado, o crescimento das cidades diversificava e aumentava a mãodeobra, alargando o número de assalariados no mundo de consumo; por outro lado, o crescimento econômico aumentava as desigualdades de renda e tornava as pessoas vulneráveis ao desemprego e à marginalização social, uma vez que grande parte da população não participava de uma efetiva distribuição de renda. A modificação na estrutura social americana levou à necessidade de criar órgãos especializados em resolver litígios nas novas comunidades urbanas. Tais litígios dificilmente envolviam grandes somas em dinheiro, tendo em vista o perfil econômico da população. Ao mesmo tempo, era preciso dar acesso à justiça para quem não podia custear um processo judicial comum, seja por insuficiência de renda, porque os valores envolvidos eram inferiores às próprias custas processuais, seja para impedir que se fizesse justiça com as

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próprias mãos (MIRANDA, PETRILLO & OLIVEIRA FILHO, 2004). Após a quebra da bolsa de Nova York em 1929, parece que o objetivo da implantação desses tribunais nos EUA, diante de um contexto de empobrecimento, visava, também, manter a ordem social. De fato, as cortes populares atendem às camadas baixas e médias da população e têm baixo custo para os usuários; tendem a ser informais, dispensando advogados e formalidades processuais que costumam transformar um processo em um ritual misterioso e temeroso aos olhos dos leigos.

Em decorrência de a tradição americana atribuir os julgamentos a um corpo de jurados, algumas dessas cortes admitem a formação de um júri popular caso a parte assim requeira. Atualmente, a nomenclatura original de poor man’s court foi substituída, em grande parte das cidades, para small claims courts (corte das pequenas causas ou reclamações), ou ainda common man’s court (corte do homem comum). Outras cortes possuem competência limitada (limited jurisdiction), compondo o grupo de tribunais inferiores denominados lower courts. Outras cortes são ainda mais especializadas; podemse citar, por exemplo, as denominadas justice courts, traffic courts (brigas de trânsito), police courts, municipal courts, mayors courts, juvenile courts (corte da juventude, infância e adolescência) (FRIEDMAN, 1984).

Nos anos sessenta, houve denúncias de que esses juizados especiais eram um exemplo de que essa justiça era manipulada contra os pobres. Os juizados foram acusados de se tornarem postos de cobrança para os empresários, pois eram “cortes dos homens pobres” somente porque os pobres eram levados a elas numa atmosfera intimidativa e forçados a confrontar os poderosos credores ou mesmo o governo. Esse tipo de denúncia levou os Juizados de Pequenas Causas americanos a uma série de reformas. No Juizado Especial de Nova Iorque, por exemplo, não se admite que empresas de cobranças e seguradoras sejam autoras de ações. Em muitas cidades, um serventuário é disponibilizado para ajudar o cidadão a preencher os formulários de ingresso com a ação judicial e, em alguns locais, é oferecida consultoria jurídica gratuita para os usuários.

Para Capelletti (1998), a justiça em geral é de difícil acesso devido aos seguintes pontos: a) custas judiciais: o custo para o

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Estado do aparato judiciário, as custas do processo, os honorários advocatícios, a proporcionalidade dos custos do processo em relação a uma causa de pequeno valor; os efeitos do tempo de duração do processo; b) habilidade de entendimento do direito: a hipossuficiência financeira, técnica ou fática das partes é capaz de desestruturar o equilíbrio do processo – diferentes níveis de conhecimento do direito e do funcionamento da justiça; c) os problemas inerentes aos interesses difusos.

As soluções encontradas, mutatis mutandis, em países da Europa e nos Estados Unidos, para tal situação passaram por três etapas, segundo Capelletti (1998). A primeira diz respeito à disponibilização de uma assistência judiciária constante e gratuita para os pobres, reconhecida como um direito de todo cidadão; tal assistência é levada a efeito através de advogados pagos pelo Estado (ou particulares, ou advogados servidores públicos). A segunda concerne à legitimação da representação de interesses difusos na processualística moderna e sua legitimação ativa para postulação em juízo, tais como os interesses que versam sobre matéria ambiental e de consumo. A busca da representação adequada dos interesses coletivos se fez imperiosa, surgindo até mesmo por meio de instituições como o ombudsman do consumidor, na Suécia, na Noruega e na Dinamarca. Na terceira etapa, surge um novo enfoque para lidar com o litígio, verificandose uma reforma dos procedimentos judiciais em geral: (a) métodos alternativos para decisão de causas, tais como o juízo arbitral e a conciliação; e (b) instituições e procedimentos especiais, tais como os juizados de pequenas causas, os tribunais de vizinhança, os tribunais especiais para defesa dos consumidores, entre outros, para a garantia dos chamados novos direitos (MIRANDA, PETRILLO & OLIVEIRA FILHO, 2004).

Promover a acessibilidade geral à justiça significa permitir que, nos tribunais de pequenas causas, o ajuizamento da ação seja realizado de forma simples, com poucas formalidades, com funcionários para assistir e orientar as partes e ajudar na definição das provas necessárias. A equalização das partes nos tribunais de pequenas causas pode ser alcançada quando dispensada a assistência de advogados, surgindo, em alguns casos, a figura de um juiz mais ativo e menos formalista.

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Em geral, a ênfase das cobranças, nessa instância do Judiciário, assentase ainda no direito individual. Apesar da classificação controversa do direito do consumidor sobre se é um direito individual ou coletivo, tomase, neste trabalho, o enfoque segundo o qual é um direito que se move na fronteira entre o individual e o coletivo, como afirmado por diversos autores. Nesse sentido, este trabalho filiase ao entendimento de processualistas italianos, como Capelleti e Zanetti (apud Tesheiner, 2005), que, de fato, classificam esse direito como multifacetado – coletivo, difuso, individual homogêneo ou social –, a depender do que se pede, ainda que, na maioria...

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