O Mercado de Trabalho do Jornalista no Pensamento do Ministro Mauricio Godinho Delgado

AutorRicardo Antônio Lucas Camargo
Páginas70-76

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Honrado com o convite para homenagear o Professor e Ministro Mauricio Godinho Delgado, bem me pareceu trazer ao debate um dos temas mais candentes nos últimos tempos, em relação ao qual o homenageado trouxe uma contribuição significativa, e que se situa na interface do Direito do Trabalho com o Direito Econômico: o da acessibilidade ao mercado de trabalho jornalístico.

Ambos os ramos do Direito têm evidente conteúdo econômico. Ao Direito do Trabalho cabe o tratamento da relação de emprego já estabelecida, nos limites do contrato, ao passo que ao Direito Econômico cabe o tratamento do trabalho enquanto objeto de política econômica.

É um dado mais do que conhecido o valor ostentado, num contexto jurídico-econômico liberal, pela "liberdade de trabalho".

A Constituição brasileira de 1988 não fugiu a esta influência, presente em todas as suas antecessoras, de 1824 a 1969.

Supor-se-ia, por isto, que qualquer que fosse o trabalho a ser desempenhado, qualquer pessoa teria condição de a ele se dedicar, se o desejasse, e, inclusive, "estava à sua decisão o ato discricionário e pessoal de afastar-se do emprego ou nele permanecer"1.

Ela "traduz o princípio da liberdade de ação, que assume, por sua vez, várias modalidades, como o direito da escolha da espécie e do local de trabalho, indo até a obrigação que exclui a liberdade de não trabalhar"2.

Contudo, tal princípio não pode ser tomado em termos genéricos, como se fosse aplicável a todo e qualquer mister.

Em primeiro lugar, mesmo que haja expressa interdição constitucional à distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual, tal interdição se vem a dar para efeitos de não se promover um amesquinhamento de qualquer deles, mas não para proclamar a desnecessidade de conhecimento específico para o desempenho de trabalhos de maior complexidade.

Existem trabalhadores "cujo trabalho supõe uma especial cultura científica ou artística"3.

Essa especial cultura científica ou artística supõe um aprendizado especial, que pode dar-se num espaço de tempo relativamente curto ou, ao contrário, exigir a realização de cursos voltados especificamente à obtenção de habilitação específica.

Assim, "entende-se o trabalho ‘qualificado’, que se traduz justamente por ‘saber fazer’ além da atividade ou do esforço simples"4.

Esta é, aliás, uma das manifestações de um dado que mostra a impossibilidade fáctica de ser estabelecido um mercado de concorrência perfeita no que concerne ao trabalho: as categorias profissionais não são todas igualmente substituíveis entre si5.

Consoante observou o homenageado, "a Constituição assegura ‘ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’ (art. 5º, XIII, CF/88; grifos acrescidos). A regra constitucional, na verdade, abrange três situações diferenciadas, fática e juridicamente: os tipos de trabalho, ofício ou de profissão não regulados especificamente por regra jurídica (em geral, labores mais simples, ou ofícios essencialmente artesanais ou pessoais ou ofícios significativamente novos, por exemplo); os tipos laborativos regulados por regras legais, quer por necessidade profissional ou social, quer por conveniência de idêntica natureza; finalmente, os tipos laborativos regulados por

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regras legais ainda mais intensas, por corresponderem a um tipo jurídico trabalhista específico, inerente à relação de emprego"6.

Por outras palavras, a presença da cláusula "atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" abriria, assim, uma ampla liberdade de conformação ao legislador, de tal sorte que por necessidade ou conveniência profissional ou social, poderia estabelecer condições prévias para o exercício de tal ou qual profissão, em relação ao segundo grupo de tipos laborativos e, em relação ao terceiro, tomaria em consideração o grau de complexidade que tenha assumido, a exigir que somente quem tenha formação específica, conhecimentos especializados, a venha exercer7.

É de se notar que o estabelecimento de condicionamentos desta natureza é considerado o exemplo clássico de restrição à liberdade de acesso ao mercado de trabalho8 e, no Brasil, para que se a pudesse considerar compatível com a Constituição, dever-se-ia demonstrar o efetivo prejuízo para o desempenho da profissão decorrente da ausência do conhecimento técnico específico.

É, por sinal, a partir deste pressuposto que o homenageado sustenta que "a regulação tende a traduzir patamar superior de inserção civilizatória, uma vez que afirma não somente a regra do art. 5º, XIII, do Capítulo I do Título II da Constituição (ou seja, ‘é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’), como também enfatiza condições superiores de exercício profissional, conferidas pelo patamar civilizatório mais elevado garantido pelo Direito do Trabalho"9.

Com efeito, o que se busca, neste caso, é a subtração ao reino do puro arbítrio das condições que se consideram mínimas para que determinado segmento do mercado de trabalho não se veja amesquinhado e, por outro lado, que entre as exigências postas e o benefício daí decorrente haja um nexo de implicação.

Afinal, todo preceito jurídico "deve obter a composição de um conflito e determinar a tutela de um interesse conflitante e a subordinação do outro, ou então o sacrifício parcial de ambos"10.

A dificuldade maior que se acha pressuposta, evidentemente, é a identificação da ausência de manifestação do legislador enquanto efetivo espaço de liberdade assegurado aos particulares ou enquanto omissão que atraia os conflitos de interesse potenciais ao campo da insegurança.

Quando se toma a exigência de habilitação para o ingresso no mercado de trabalho, vê-se o porquê dos perigos consistentes em tomar a oferta deste como se fosse possível submetê-la a uma regra de validade universal:

As condições deste oferecimento da força de trabalho variam, portanto, de acordo com as próprias condições humanas de sobrevivência, chegando ao mais alto grau de valorização que se prende, de seu lado, à crescente capacitação. À primeira vista, portanto, o elemento quantidade oferecida variaria na razão direta da baixa capacitação, ou seja, haveria tanto mais oferta quanto mais despreparada fosse uma população em termos de exercício de tarefas complexas. A observação nem sempre se confirma, entretanto, pois nas épocas de recessão, como no subdesenvolvimento de modo geral, os trabalhos altamente qualificados sofrem os efeitos da falta de oportunidades e se oferecem em excesso, do mesmo modo que em fases de real desenvolvimento econômico, com o correspondente tecnológico, o trabalho simples permite a substituição por máquinas. Não é raro, mesmo em períodos supostamente normais, que se verifique o "subemprego" pela exigência de certas capacitações, como o nível de instrução primário ou secundário, para trabalhos que não os exigiriam, porém que diante da abundância de oferta, permite retirar-se maior esclarecimento do trabalhador, resultados mais compensadores, pelo que resultou em racionalização, aprendizagem de técnicas de maior produtividade e outros.11

Não se pode esquecer que, no contexto da ordem jurídica do capitalismo, o trabalho tem caráter subordinado e é desempenhado de acordo com as necessidades da empresa.

A ideia de subordinação, no entanto, não entra em contradição com a de liberdade de trabalho.

Isto porque, como salienta o homenageado, "subordinação é conceito que traduz a situação jurídica derivada do contrato de trabalho mediante o qual o empregado se obriga a acolher a direção do empregador sobre o modo da realização da prestação dos serviços"12.

Nasce, pois, do contrato, formado, como é sabido, de modo espontâneo, livre, por ambas as partes, embora a necessidade da presença do Estado regulador para compensar os desequilíbrios efetivamente existentes13.

A necessidade da disciplina legal das relações de trabalho é assim salientada pelo homenageado:

A oferta de trabalho no capitalismo, inclusive o brasileiro, tende a não gerar para o prestador do serviço vantagens

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econômicas e proteções jurídicas significativas, salvo se induzidas ou impostas tais proteções e vantagens pela norma jurídica interventora na respectiva contratação.14

O papel desempenhado pela invenção da imprensa, para o desenvolvimento do capitalismo, tem sido amplamente salientado, pela massificação de informações que, antes, estavam restritas a alguns poucos que delas necessitavam ou para o exercício do respectivo poder de coação ou para melhor definirem as estratégias dos respectivos negócios15.

A veiculação de ideias em caráter massivo conduziria, necessariamente, a que o exercício do poder tivesse de ser acrescido, cada vez mais, de um esforço para o fim de lograr aceitação por parte de quem se tivesse de submeter e, por isto mesmo, entendeu-se que, para evitar o estabelecimento de uma "verdade oficial" por parte de quem detivesse o monopólio da informação, seria necessário que ela fosse tratada como atividade privada, organizada em caráter empresarial, de preferência16.

Os elementos da produção vêm, aqui, a fazer-se todos presentes: há a matéria prima, que são os fatos que se verificam e que serão objeto de consideração para divulgação ao público, há o capital, que se constitui dos bens e direitos que serão aplicados à obtenção, seleção, processamento e oferta ao público, e há o trabalho, tanto manual, como é o caso dos tipógrafos17, digitadores, motoristas, entregadores, e o trabalho intelectual. O homenageado arrola os meios de comunicação social dentre as "instituições da sociedade civil que expressam o próprio espírito e exercício da democracia"18.

Nem por isto, atividade econômica que é, deixa a comunicação social, por qualquer de seus setores, seja o jornalismo, seja a publicidade, sejam quaisquer outros, de seguir a lógica própria dos demais, ou seja, a perseguição do lucro, com todos os...

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