Jornada de trabalho exaustiva e a orientação n. 3 da coordenadoria nacional de erradicação do trabalho escravo do ministério público do trabalho (CONAETE)

AutorRaymundo Lima Ribeiro Júnior
CargoProcurador do Trabalho
Páginas135-162

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Introdução

A Lei n. 10.803, de 11 de dezembro de 2003, ao alterar o art. 149 do Código Penal, enumerou uma série de atos caracterizadores do tipo penal de redução do homem à condição análoga à de escravo, quais sejam: trabalhos forçados; jornada de trabalho exaustiva; condições degradantes de trabalho; restrição da locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; cerceamento do uso de transporte; manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho e apoderação de documentos ou objetos pessoais do trabalhador.

Embora a citada lei tenha representado um avanço, à luz dos direitos humanos e fundamentais, na tipificação do crime em comento, ao relacionar condutas patronais historicamente constatadas na relação de superex-ploração dos trabalhadores, nota-se que ainda residem discussões a respeito dos contornos conceituais1 de cada conduta antijurídica do tipo estampado no novel art. 149 do Código Penal, inclusive no que atine à definição de jornada de trabalho exaustiva, objeto do presente estudo.

As referidas discussões são travadas, notadamente, no âmbito do Ministério Público do Trabalho, tendo em vista a diuturna e diversificada atuação de seus membros na erradicação das condutas tipificadoras do crime de redução do homem a condições análogas à de escravo em todo o extenso território nacional.

Exemplificativamente, podem-se mencionar atuações do Parquet laboral, judiciais e extrajudiciais, no combate ao tráfico de imigrantes clandestinos, especialmente bolivianos, para o trabalho na indústria têxtil na cidade de São Paulo, no aperfeiçoamento das condições de trabalho na secular cultura da cana-de-açúcar em vários rincões do país, na fiscalização do cumprimento das normas de saúde e segurança na indústria da construção civil, na repressão das péssimas condições de trabalho encontradas nas regiões de fronteira agropecuária2 e na imposição de limites ao trabalho extenuante de caminhoneiros na gigantesca malha rodoviária nacional3,

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sendo que em todas as atividades acima mencionadas já foram flagradas jornadas de trabalho exaustivas.

A propósito da atuação ministerial no setor da cultura da cana-de--açúcar, cita-se o Programa Nacional de Promoção do Trabalho Decente no Setor Sucroalcooleiro levado a cabo, em 2009, pelo Ministério Público do Trabalho, com apoio de órgãos parceiros, consistente em iniciativas judiciais e extrajudiciais planejadas e concentradas visando a resguardar a dignidade do trabalhador, sua saúde e segurança, exigindo dos empregadores do setor o cumprimento da lei, especialmente da Norma Regulamen-tadora n. 31 do Ministério do Trabalho e Emprego.

Já em relação à fiscalização do cumprimento das normas de saúde e segurança na indústria da construção civil, aponta-se o Programa Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas na Indústriada Construção Civil executado, em 2009, pelo Ministério Público do Trabalho, com apoio de órgãos parceiros, exigindo dos empregadores do setor o cumprimento da lei, especialmente da Norma Regulamentadora n. 18 do Ministério do Trabalho e Emprego.

Diante dessa vasta atuação ministerial, visando a orientar os membros do Parquet laboral em sua atividade judicial e extrajudicial4 de erradicação do trabalho em condições análogas à de escravo, tendo em vista o princípio constitucional da unidade (art. 127, § 1e da Constituição da República de 1988), a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo — CONAETE, órgão temático de coordenação nacional do Ministério Público do Trabalho, aprovou, na reunião dos dias 11 e 12 de novembro de 2009, em Brasília, a sua Orientação n. 3, também conhecida como marco teórico institucional da jornada de trabalho exaustiva, assim dispondo: Jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, frequência, desgaste ou outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade.

Como se vê, a citada orientação relacionou o direito à limitação da duração do trabalho aos direitos humanos e fundamentais à saúde e à

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dignidade do trabalhador, ao tempo em que entendeu como exaustiva, a contrario sensu, a jornada de trabalho que viole tais direitos, acrescentando, ao final, a situação de sujeição do trabalhador para a caracterização da jornada de trabalho exaustiva.

Acrescente-se que, ao ser aprovada a aludida orientação, não se tencionou fragilizar o princípio da independência funcional dos membros do Parquet laboral, também de quilate constitucional (art. 127, § 1e da Constituição Republicana de 1988), e sim sua harmonização com o princípio da unidade. Ademais, a orientação institucional não vincula os membros do Ministério Público do Trabalho, que detêm independência funcional para, no caso concreto, melhor tutelar o interesse coletivo lesionado ou ameaçado, de acordo com o Direito e segundo a própria consciência do Procurador oficiante.

Dito isso, tentar-se-á neste estudo assinalar a centralidade do trabalho nas relações humanas, sua condição de direito humano, a íntima relação entre as normas de limitação da duração do trabalho e os direitos humanos e fundamentais trabalhistas, além de expor, de forma crítica, a chamada flexibilização jurisprudencial das normas de duração do trabalho e consequente nociva institucionalização das horas extras habituais, para então discorrer especificamente sobre a Orientação n. 3 da CONAETE.

1. Da centralidade do trabalho e direitos humanos

O trabalho humano é, sem dúvida, o maior responsável pelo desenvolvimento dos povos e pela geração de riquezas, ocupando posição central em todos os sistemas produtivos até então conhecidos pela humanidade. Na atualidade, a importância do trabalho nas sociedades contemporâneas é tamanha que as relações humanas são preponderantemente estabelecidas a partir do trabalho que os indivíduos desempenham, tanto que as pessoas são identificadas, geralmente, mais pelo que fazem do que pelo que são.

No entanto, a atual fase do capitalismo mundial acena para a precari-zação, desregulamentação, flexibilização e terceirização das relações de trabalho, muito por causa da hegemonia do capital vivenciada especialmente após a derrocada do socialismo real na antiga União Soviética, o que não significa perda da centralidade do trabalho, mesmo porque, em qualquer tempo e lugar, sem o trabalho o capital não subsiste.

De fato, o trabalho humano nas sociedades contemporâneas está a vivenciar relevantes mudanças, as quais devem despertar nos aplicadores do Direito do Trabalho novos conceitos e paradigmas, como a concepção

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da subordinação estrutural para fazer face à terceirização desenfreada, e mesmo o resgate da vertente da subordinação econômica para fazer face à autonomização, desproletarização e pejotização dos operários, superando--se a concepção ultrapassada da subordinação jurídica, sem falar na ideia de responsabilização solidária de toda a cadeia produtiva que se beneficia do trabalho humano quando da ocorrência de violações a direitos trabalhistas, com base no princípio do solidarismo constitucional (art. 3e, I da Constituição Republicana de 1988).

É dizer: mostra-se inquestionável a centralidade do trabalho e sua importância para a manutenção do tecido social e para a própria preservação da espécie humana, apesar das alterações sentidas pela força de trabalho.

Nada obstante, o efetivo reconhecimento dos direitos trabalhistas como direitos humanos, e com todas as consequências daí advindas5, inclusive em matéria de duração do trabalho, não tem sido fácil, bastando observar a ampla flexibilização jurisprudencial das normas de duração do trabalho e consequente nociva institucionalização das chamadas horas extras habituais, em que pese a vasta sustentação normativa internacional que rege o trabalho e sua duração, o que será exposto no tópico seguinte.

2. Duração do trabalho e direitos humanos

Ressalte-se, de antemão, que foi adotada aqui a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais proposta por Ingo Wolfgang Sarlet (2006), para quem os direitos fundamentais são aqueles direitos do ser humano reconhecidos na Constituição de um determinado Estado, enquanto que direitos humanos são os que estão estabelecidos nos documentos de direito internacional, referindo-se a posições jurídicas atribuídas ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação a um determinando ente estatal.

Desta feita, do ponto de vista das relações internacionais, não há dúvidas de que o direito do trabalho esteve intimamente relacionado com a

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teoria dos direitos humanos desde as suas primeiras manifestações, o que se evidencia, por exemplo, pela criação, para a proteção e promoção do trabalho livre e digno, de uma organização internacional especializada em matéria laboral, a Organização Internacional do Trabalho — OIT, como consequência do término da Primeira Guerra Mundial e da crise do capitalismo internacional instalada à época6.

E, dentre os direitos trabalhistas, a limitação da duração do trabalho esteve presente desde as primeiras reivindicações proletárias e, também, nas embrionárias manifestações do Direito do Trabalho, inclusive de âmbito internacional7, o que bem demonstra, igualmente, a identificação da limitação da duração do trabalho com a teoria dos direitos humanos.

A propósito, ainda na fase das incipientes insurreições operárias na Europa...

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