Jornada de trabalho e o direito à limitação: desencontros entre a Constituição e a legislação infraconstitucional

AutorLaryssa Marcelino da Silva
CargoPós-graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Católica Dom Orione em Araguaína-TO
Páginas45-63

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1. Introdução

O direito à limitação da jornada de trabalho consiste em uma permanente preocupação dos trabalhadores e da sociedade. Verifica-se no decorrer da história que a regulamentação da jornada de trabalho passou por diversas modificações, das dezesseis horas diárias previstas na época da Revolução Industrial ao atual limite de oito horas por dia definido pelo art. 7fl,XIII, da Constituição da República Federativa do Brasil.

É certo que o tema continua sendo alvo de debates na esfera política, havendo inclusive uma Proposta de Emenda Constitucional, a de n. 231, que se encontra aguardando apreciação plenária no Congresso Nacional, a qual pretende reduzir o limite da jornada semanal a 40 horas e incrementar o adicional de horas extras mínimo para 75%2.

Por outro lado, o art. 62 da CLT exclui do âmbito da proteção do Capítulo II, que trata da jornada de trabalho, uma horda de trabalhadores cada vez maior. A suposta incompatibilidade de controle de jornada atribuída aos trabalhadores externos e aos ocupantes de cargos de gestão implica no elastecimento frequente da jornada de trabalho, privando esses empregados do direito de se desconectar do trabalho como aponta o doutrinador Souto Maior no artigo Do direito à desconexão do trabalho3.

Por outro lado, é sabido que conforme disposto no art. 32 da Consolidação das Leis do Trabalho, para ser considerado empregado, ou seja, ter reconhecido o vínculo emprega-tício é necessário atender aos requisitos da subordinação, onerosidade, não eventualidade e pessoalidade. Evidente, portanto, que para ser considerado empregado é preciso ser uma pessoa natural, que como tal possui família, vida social e desenvolve outras atividades que não apenas o trabalho.

Nesse contexto, o legislador constituinte ordinário de 1988, diferente daqueles que o antecederam, dispôs os direitos sociais na parte inicial do texto, destacando-os em primeiro plano como direito fundamental, numa atitude que evidencia o amadurecimento dos conceitos atinentes à dignidade da pessoa humana.

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Assim, com o objetivo de preservar a vida e a saúde do trabalhador, a Carta da República prevê no art. 7-, inciso XIII, o direito à jornada de trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultadas a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Havendo prorrogação da jornada, resta assegurado ao trabalhador o recebimento de um adicional superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal, na forma do inciso XVI, do mesmo art. 1- da Constituição Federal4.

A inserção da limitação de jornada dentro dos direitos e garantias fundamentais, constituída como cláusula pétrea nos termos do art. 60, IV, da CF, revela tamanha importância para a consecução dos seus preceitos e a preservação da dignidade da pessoa humana.

Além de ser uma proteção constitucional, a limitação de jornada consiste em uma das características do trabalho decente, que conforme conceito proposto pela Organização Internacional do Trabalho significa "um trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna"5, pois ao trabalhador, como pessoa natural e destinatário de direitos e garantias fundamentais, também deve ser conferido não só o direito, mas a observância de sua necessidade vital de convivência familiar e social bem como a disponibilização de tempo para aprimoramento moral, intelectual e social, além das atividades de lazer.

2. Sobrejornada ilimitada: desencontros entre a Constituição e a legislação infraconstitucional e o desrespeito do direito ao lazer
2.1. A exclusão do direito à limitação de jornada promovido pelo art 62 daCLT

Apesar da importância do trabalho para o ser humano, não há justificativa para que o trabalhador se sujeite a trabalhar o maior tempo possível ou por quanto tempo deseje. Inclusive, desde 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, existe a previsão de que "todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas"6.

A Constituição de 1934 foi a primeira a impor limitação à jornada dos trabalhadores. Contudo, faz-se imperioso lembrar que a definição de jornada máxima de trabalho e os demais direitos assegurados naquela Carta não consistiram em um presente do então presidente Getúlio Vargas, mas, em verdade, constituíram o fruto de movimentos sindicais e de uma complexa articulação política em um misto de autointeresse do Estado e a pressão exercida pelos trabalhadores7

A Constituição de 1967/69 assegurava aos trabalhadores a jornada diária limitada a oito horas com intervalo para descanso, salvo os casos especialmente previstos (art. 165, VI), assim como a Constituição de 1946 (art. 157, V) assumia a possibilidade de prorrogação de

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jornada em casos e condições excepcionais que fossem previstas em lei8

A Carta Cidadã de 1988 ampliou a tutela trabalhista, dedicando aos trabalhadores alguns artigos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e todo o Capítulo II intitulado dos direitos sociais, dando grande ênfase aos direitos individuais e também aos coletivos9.

Destaque-se que a Constituição Federal, logo em seu art. Ia dispõe como fundamento a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, conforme os incisos III e IV do referido artigo10. Esse destaque aos direitos sociais reflete a mudança de paradigma da sociedade e da concepção da democracia.

Vale ressaltar que Ingo Wolfgang Sarlet aponta que a Lei Maior de 1988 foi "inequivocamente (para alguns em demasia!) amiga dos direitos sociais", mas adverte que essa modernidade insculpida no bojo do texto constitucional além de não ter sido totalmente implementada, foi alvo de sérias críticas e debates acirrados no mundo jurídico, inclusive, apontavam ilegitimidade da constituinte de 1987 como subterfúgio para uma grave revisão do texto constitucional, com exclusão de direitos destinados aos trabalhadores11

Note-se que, durante mais de quatro décadas o contexto normativo expressava que a regra geral de horários era definida no plano constitucional e os regimes especiais eram previstos no plano infraconstitucional, ou seja, por lei12

Busca-se, atualmente, a interpretação de que o incremento da jornada de trabalho só é autorizado em razão de força maior, tida como acontecimento imprevisível para o qual o empregador não concorreu direta ou indi-retamente; recuperação do tempo perdido em virtude de força maior ou causas acidentais; conclusão de serviços inadiáveis ou cuja ine-xecução possa acarretar prejuízos manifestos ao empregador em razão de sua natureza13

Além dos motivos acima, a CLT autoriza a prorrogação de jornada nos casos em que houver acordo ou convenção coletiva, sempre limitada em duas horas extraordinárias por dia. Também estipula a observância do acréscimo mínimo de 50% sobre o valor da hora normal, conforme art. 59 do citado diploma legal14

Sabe-se que, uma vez reconhecida a habitua-lidade da prestação das horas extraordinárias, sobressai a obrigação de integrá-las para cálculo das verbas rescisórias. Acontece que, ainda que não houvesse exceção ao controle de jornada, a extrapolação corriqueira do limite de 44 horas semanais acaba por contrariar os princípios do pleno emprego e do trabalho decente, pois o empregador se exime de contratar outros trabalhadores para suprir a demanda de produção. Por outro lado, a possibilidade de tornar o labor extraordinário habitual acaba por desatender o objetivo da ordem de limitação de jornada prevista na Constituição Federal15

Note-se que o direito do trabalhador à limitação de jornada de trabalho tem vital

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importância, sendo que o traslado dos direitos sociais anteriormente dispostos na Constituição no título Da Ordem Económica e Social e agora previstos no capítulo Dos Direitos e Garantias Individuais, alocado, inclusive, antes das questões relativas à organização do Estado, reflete o anseio do constituinte na consolidação e efetivação do fundamento norteador de toda a Carta Cidadã, qual seja, a dignidade da pessoa humana.

Entretanto, a legislação infraconstitucional, por alguns instantes, parece caminhar em outro sentido, pois se verifica, por exemplo, que o art. 62 da CLT promoveu a exclusão do controle de jornada dos trabalhadores externos e detentores de cargos de gestão16. Frise-se que a não sujeição ao controle de jornada implica na esfera prática dizer que o trabalhador não tem direito aos acréscimos remuneratórios em caso de extrapolação da jornada de 44 horas semanais.

A redação anterior do art. 62 da CLT dispunha o seguinte:

Art. 62 - Não se compreendem no regime deste Capítulo:

  1. os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral, funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no livro de registo de empregados, ficando-lhes de qualquer modo assegurado o repouso semanal;

  2. os gerentes, assim...

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