A (ir)responsabilização da administração pública perante a terceirização e o Projeto de Lei N. 4.330/2004: um retrocesso social

AutorFlávia Marcela Ferrão Xerita Maux
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós-graduanda em Direito Processual Civil e do Trabalho pela Escola de Magistratura do Trabalho da 6a Região. Advogada
Páginas65-74

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1. Introdução

Este trabalho, abarcado sob a luz do princípio da digE nidade da pessoa humana, almeja apresentar uma problemática que se faz presente no cenário brasileiro e volta a ser debatida nos tempos hodiernos: a terceirização.

Esta forma de flexibilização, que tem como possível fenômeno propulsor a globalização, as mudanças advindas do neoliberalismo e da pós-modernidade, já é objeto de discussão incessante na doutrina e na jurisprudência, pois trata da antiga contraposição do capital contra o trabalho, na qual se depara com diferentes posições sobre qual dos dois valores teriam predominância em relação ao outro, tanto na prática como na teoria. O referido assunto volta a ser mais enfatizado, também, devido ao Projeto de Lei n. 4.330 de 2004, após o embate no Congresso Nacional desde o segundo semestre do ano de 2013.

Este trabalho, para tanto, encontra-se dividido em quatro capítulos, dentre os quais o primeiro destina-se a relatar marcos teóricos das Relações de Trabalho, abarcando o neoliberalismo e o pós-modernismo.

Após isso, entrando no segundo capítulo, tratar-se-á da Terceirização e da sua ligação com a ideologia neoliberal e a pós-moderna, resultando, no âmbito do Direito do Trabalho no aparecimento de dois importantes efeitos: a insuficiência de normatização e a supressão dos direitos dos obreiros terceirizados, configurando uma relação de desequilíbrio na qual não se busca efetivar as garantias mínimas.

No terceiro capítulo, será discutido sobre a responsabilidade da Administração Pública, com base na Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho após o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16. Apresentando-se a necessidade de um olhar especial sobre o tema que se encontra instalado no cotidiano brasileiro, embora ainda insuficientemente regulamentada.

Por fim, no último e quarto capítulo, depois de explicado a terceirização e as demais diretrizes deste artigo, será abordado, em linhas gerais, sobre o Projeto de Lei n. 4.330 de 2004 e a sua consolidação para a precarização e retrocesso no país.

2. Marco teórico das relações de trabalho

Para se situar melhor no decorrer deste artigo é salutar apresentar um contexto histórico do surgimento das ideias flexibilizatórias para compreender melhor os efeitos da terceirização e da responsabilidade do Estado na Administração Pública. Para tanto, é interessante fazer uma análise histórica do Direito do Trabalho, desde o possível surgimento destas ideias, ainda que de forma sucinta.

Foi no século XVIII, com a Revolução Francesa e Industrial que começou a ganhar cara o que viria a ser o Direito do Trabalho. Estes momentos marcados na história foram causadores de mudanças drásticas no âmbito laboral, isto é, a burguesia passou a ser detentora do poder, dando lugar ao liberalismo como o sistema político-econômico, ou seja, deixando no passado o absolutismo, como afirmam os doutrinadores.

A Revolução Industrial, a qual teve como consequência o aparecimento do Direito do Trabalho, acarretou mudanças no setor produtivo e deu origem à classe operária, transformando as relações sociais1.

Diante deste novo cenário, a ideologia reinante nada mais era do que zelar pela propriedade privada, produção em massa, bem como pela "liberdade dos indivíduos"2.

Afinal, a abstenção do Estado nas relações privadas era o que defendiam os liberalistas: a não intervenção estatal. Dando vez para preocupar-se com questões em que sua presença se fazia mais necessária3. Acontece, todavia, que o ideal da tríade da Revolução Francesa não vigorou em detrimento da nova classe dominante que imperava, pois a burguesia tornou-se o polo explorador da história.

Isto posto, a desenfreada e ilimitada liberdade juntamente com a produção em massa, configurou em cenários de

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locais insalubres e perigosos, com condições de trabalhos desumanos, sem parâmetros mínimos de garantias aos trabalhadores, visando apenas os lucros.

Diante da situação de total ausência de consciência social4, logo surgiram novas revoltas ao sistema suso que a época imperava. E, então, quando começou a se instalar confusões em detrimento do exposto, o Estado, que até então se portava como mero espectador destes acontecimentos, começou a intervir e impor limites à tamanha liberdade e falta de consciência social, humana. Surgindo as primeiras normas trabalhistas que desde então mantêm a proteção do trabalhador hipossuficiente - pelo menos essa ainda é vista como uma das maiores características do Direito Laboral.

A rigor, conforme informou a respeitável doutrinadora Alice Monteiro de Barros, todos os ramos do Direito e, principalmente, as relações de trabalho foram-se insurgindo contra os princípios liberais e reclamando modificações nos seus institutos. Ainda, é salutar expor que doutrinadores sustentam que o Cristianismo e o Marxismo insurgiram-se contra a ideologia liberal, seja porque não poderia compactuar com a negação da dignidade humana, seja porque os princípios liberais oprimiam as classes trabalhadoras.

Foi só de fato depois da Primeira Guerra Mundial, contudo, que o Direito do Trabalho foi considerado como ramo do Direito, com a criação do Tratado de Versalhes, passando o mesmo a ser incorporado nas Constituições, como Direito Social.

Isto posto, ao caminhar pela história, depara-se com um marco importante: a queda do Muro de Berlim no ano de 1989, a qual prevalece o modelo econômico capitalista, em detrimento do socialista, nascendo, então, o famoso modelo do Neoliberalismo. Este atingiu todos os continentes, direta ou indiretamente, vindo com a intenção de não mais centralizar o comando de certos serviços no Estado, fortalecendo a iniciativa privada. Já o novo liberalismo, que talvez não seja tão novo assim, e, portanto, talvez só tenha recebido este nome com o "neo", o "novo" na frente de "liberalismo" para dar uma "nova roupagem" ao sistema, é uma tentativa de revigorar um sistema com uma imagem cansada. Afinal, este sistema ilustrava ter como principal proposta à volta da redução da intervenção do Estado nas relações particulares, mas agora prevalecendo à lei da concorrência5, atingindo principalmente o cerne do Direito do Trabalho. Afinal, a liberdade das atividades do mercado englobaria a definição "livre" e sem medida de como seria a melhor forma de organizar as condições dos obreiros, um que por si só já se configurava um perigo.

A globalização surge como "parte de um todo formado pelo neoliberalismo, privatizações, multinacionais, dentre outros elementos que concernem à estrutura e atribuições do Estado e de sua organização política, suas relações internacionais e à ordem socioeconômica nacional e mundial"6. O processo de globalização significa que o mundo se reduz transformando-se em uma tendência de um mercado mundial único. É a mudança na matriz espaço-tempo, que já não se adapta ao antigo paradigma. A conformação internacional passa a ser cada vez mais importante que o âmbito nacional7.

O fenômeno da globalização, possivelmente propulsor da terceirização8, é decorrente de um programa de produção em massa que se originou. Uma nova dinâmica que se perfazia por mudanças ensejadas nas organizações e tecnologias impostas pela era globalizante da economia mundial, afinal, o Direito, como um sistema de normas de regulamentação social, é afetado por esse fenômeno. Ou seja, os efeitos do sistema capitalista expandiram-se do econômico ao financeiro, passando por outros campos relacionados9. Prevalecendo, portanto, o investimento, e não a preocupação com os Direitos Sociais. Outro aspecto interessante a ser destacado é o detrimento do fator humano de criação e de transformação de riquezas a favor do capital10.

Hodiernamente a globalização se inseriu na vida de todos os seres humanos. Ora, com a ideia de um só mundo, a globalização vem com um tremendo impacto, portanto11.

Mudanças dos processos de trabalho e da economia geraram consequências lógicas, sentidas por todos, isto é, desigualdades sociais, políticas, religiosas, culturais etc.; nações desnacionalizadas, como elenca Stuart Hall,

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subordinada a uma teia composta dos países ricos predominantes aos pobres, geradas por um índice alarmante de desempregos. A globalização, fenômeno mundial, sob a égide do neoliberalismo, implicou o desmonte do Estado de bem-estar social e as articulações políticas necessárias.

Assim como o neoliberalismo, hoje usado como fonte material no direito do trabalho e associado ao maior fenômeno da pós-modernidade, a globalização, causou grandes impactos, repita-se, inclusive com o tema desta pesquisa, elucidando as ideias flexibilizatórias, a qual virá a ser estudada mais adiante. Ainda importante lembrar, antes de seguir, que o pós-modernismo não tem um marco cronológico propriamente dito, pois ele configura uma reformulação do comportamento, da dinâmica das relações humanas.

3. Terceirização

Com o então advento da pós-modernidade e uma significativa tendência de apoio à globalização12, a flexibilização surgiu com o propósito de deixar as leis que tratam da legislação trabalhista menos rígidas, gerando, assim, menor responsabilidade social do empregador para com o empregado13, e isso com o respaldo do Estado que não apenas faz uso da terceirização, mas também é quem possibilita tal (ir)responsabilização - situação deveras alarmante, posto que referida flexibilização vem com o fulcro primordial de garantir a competitividade, o lucro nas empresas.

A flexibilização traduz uma forma de adaptação das normas trabalhistas às grandes modificações verificadas no mercado de trabalho. Desde já, todavia, é...

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