O Instituto da Propriedade e o Paradigma Privado

AutorAlbenir Itaboraí Querubini Gonçalves
Páginas19-36

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1. 1 A Codificação, o Estado Liberal e a propriedade

Entender o processo de codificação é de suma importância para a compreensão da visão jurídica da propriedade como um direito autônomo e de conteúdo patrimonialista, revestida de caráter individualista, a qual ainda projeta suas sombras nos dias de hoje e vem a ser uma das principais causas do choque entre exploração agrária e preservação do meio ambiente. Nesse sentido, o processo de codificação das leis, iniciado no século XVIII, constitui importante marco para a ciência jurídica moderna, representando um importante avanço na técnica legislativa e, ao mesmo tempo, consagrando os valores e ideologias liberais e individualistas da então ascendente classe capitalista, rompendo com toda a tradição jurídica consolidada até então. O fenômeno da codificação, fruto da Revolução Francesa, não deve ser analisado apenas sob a óptica jurídica, mas associado ao contexto histórico, econômico, social e filosófico, uma vez que serviu como importante instrumento de contenção da intervenção estatal no domínio privado, proporcionando aos capitalistas a aquisição da propriedade e a segurança na realização de seus negócios.

Antes disso, nos primórdios, enquanto os homens ainda eram nômades, a terra não possuía donos, era, ao mesmo tem-

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po, de todos e de ninguém. Posteriormente, com o fim do nomadismo, junto com as primeiras civilizações, surge a noção de propriedade, e com ela a apropriação dos bens. Inicialmente, a ideia da propriedade era afeita apenas aos bens familiares, sendo que a relação entre homem e a propriedade estava selada por um sentimento religioso2. Entretanto, nesse período, a terra ainda mantinha seu caráter coletivo. Com o passar do tempo a noção de propriedade individual, que antes dizia respeito apenas aos bens familiares, também se estendeu aos demais bens3.

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Foi com base no Direito Romano que surgiu a concepção individual da propriedade, a qual passou a ser vista como "uma dominação, verdadeiro, ‘dominium’, poder direto, absoluto, imediato e total da pessoa sobre a coisa"4, que atribuía ao proprietário o poder de usar, gozar e dispor da coisa ("jus utendi", "jus fruendi" e "jus abutendi"). No entanto, é importante destacar que a partir de Justiniano a propriedade no Direito Romano adquiriu um sentido social5, traço que lhe seria diferenciador em relação ao paradigma liberal instaurado mais tarde com a Codificação.

Com a queda do Império Romano, houve a fusão das tradições romanas e bárbaras, que acabou consolidando o regime feudal na Idade Média6, de característica nitidamente agrária. No período medieval a propriedade da terra era pertencente ao senhor feudal, que era o detentor do domínio direto da propriedade7.

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Era característica fundamental do sistema feudal a divisão social existente entre senhores feudais e vassalos. Além das figuras dos senhores feudais e dos vassalos, não pode ser esquecido que a Igreja também compunha a estrutura social da época. Sublinhe-se que a sociedade medieval era estamental e a mobilidade entre as classes sociais era muito restrita e limitada, assumindo o indivíduo sua devida posição pelo nascimento. Nesse sistema, o Direito servia apenas para manter os privilégios daqueles nascidos entre os nobres. Em outras palavras, os instrumentos jurídicos da época não ofertavam mecanismos os quais viabilizassem a aquisição da propriedade para aqueles que não a detinham.

Além da propriedade, cumpre destacar que o soberano detinha poderes que o identificavam com o próprio Estado (já que detinha o poder de ditar as leis, executá-las e fazer cumpri-las), havendo uma confusão entre público e privado, conforme observou Rosalina Rodrigues Pereira8. Gradativamente, o poder político foi sendo transferido e concentrando na figura do Rei, dando origem, mais tarde, ao Estado Absolutista.

Paralelamente à referida estrutura medieval, ganhou ascendência a classe burguesa, a qual inicialmente era composta por artesãos e mercadores. Como referido anteriormente, a desigual-dade das classes no modelo feudal, além de não garantir mobili-dade social, também não viabilizava instrumentos jurídicos para a aquisição da propriedade e segurança jurídica para os negócios realizados pela burguesia, o que levou a uma reação contra o modelo do Antigo Regime.

O século XVII acabou sendo marcado pelo colapso do Estado Moderno Absolutista e sua gradativa substituição pelo Estado Liberal9, com a ascensão do capitalismo, que posteriormente atin-

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giria a sua consolidação por meio da industrialização (Revolução Industrial). Importantes fatos históricos contribuíram para significativas transformações sociais e a consolidação de novos paradigmas, tais como a Independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução Industrial na Inglaterra (1760-1850) e, em especial, a Revolução Francesa (1789-1799), que teve como fruto a posterior edição do Código Civil Francês de 1804, mundialmente conhecido como Código Napoleônico.

As constantes intervenções do Estado monarca na economia, em especial nos negócios da burguesia, consistiam o principal entrave ao avanço dessa classe, devido à rigidez e à hierarquização da sociedade. Não havia meios que favorecessem a ascensão social e econômica, pois inexistia um regime jurídico que permitisse igual-dade entre os indivíduos. O outro grande anseio da classe burguesa era obter o domínio da propriedade imóvel, uma vez que também não havia um regime jurídico que permitisse a aquisição e manutenção da propriedade, a qual pertencia aos nobres ou ao clero, conforme salientado anteriormente. Desta forma, o anseio por segurança jurídica e por instrumentos jurídicos capazes de garantir a aquisição, a manutenção e a sucessão da propriedade foram importantes causas motrizes que impulsionaram o rompimento com o modelo do Antigo Regime, cujo marco temporal foi a Revolução Francesa, movimento burguês, de fundo iluminista, baseado nos ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade10.

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Porém, de nada adiantaria uma revolução por parte da classe burguesa se após a tomada do poder não houvesse um mecanismo capaz de garantir a tão almejada segurança jurídica para seus negócios, a fim de que ficassem esses protegidos de interferência estatal, bem como que assegurasse a propriedade. A segurança jurídica, desta forma, era ponto vital para a consolidação e o sucesso do modelo liberal capitalista. O melhor exemplo para visualizar a necessidade de segurança jurídica são os contratos11, pois não interessava à classe burguesa o risco de ter seus contratos desconstituídos ou modificados pela interferência dos juízes. Esse, aliás, era um temor sempre presente, já que "o costume era tido como fonte de corrupção e matriz dos abusos peculiares a uma sociedade fundada no privilégio, em que a própria magistratura é uma classe privilegiada"12 .

Mas qual seria o mecanismo para solucionar a falta de segurança jurídica e, ao mesmo tempo, viabilizar a aquisição da propriedade? A solução estava na edição de leis, emanadas agora da vontade do povo (por meio do Poder Legislativo), as quais rompiam com os privilégios entre as classes sociais do período feudal. A produção de leis garantia tratamento igualitário (igual-dade formal) entre os membros da sociedade, por meio da noção de cidadão13, e, ao mesmo tempo, consolidaram a segurança ju-

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rídica para as relações privadas. Desta forma, houve uma separação entre o Direito Público, que passou a abranger as normas de caráter público referentes à estrutura política e à organização do Estado, e o Direito Privado, que consistiria nas normas que disciplinariam as relações dos particulares, as quais passaram a ser regidas pelo Código Civil, afastando-se, assim, a interferência estatal nas relações privadas14.

Fruto do ideal burguês, o surgimento do Código Napoleônico15, refletindo a mentalidade individualista da época16, serviu ao

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desenvolvimento das forças produtivas nascentes. A codificação, assim, possibilitou aos cidadãos, a partir da liberdade e da igual-dade formal, a aquisição da propriedade privada17, anteriormente declarada como um direito individual pela Declaração Universal dos Direito Humanos18: surgia, desta forma, uma nova fase do direito de propriedade, consolidado a partir do paradigma privado.

1. 2 O paradigma privado e suas consequências ambientais

A concepção individualista sobre a propriedade, consolidada a partir da Revolução Francesa com a codificação, caracterizou o surgimento do paradigma privado, em que a propriedade era vista como um direito absoluto de que o proprietário poderia usar, dispor e fruir da forma que bem entendesse19. Essa visão favore-

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ceu o desencadeamento de consequências ambientais negativas, já que viabilizava a apropriação dos bens ambientais de forma desregrada e desenfreada, tudo com amparo legal de poderes conferidos ao proprietário.

A visão privatista da propriedade consolidada pelo Código Napoleônico influenciou a legislação de vários países. No Brasil, o Código Civil Brasileiro de 191620, influenciado pelo Código Napoleônico, embora não conceituando o direito de propriedade, assegurava, em seu artigo 524, ao "proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua".

A propriedade era tratada pela doutrina civilista tradicional como o mais amplo dos direitos reais, o qual conferia poderes praticamente ilimitados aos seus proprietários sobre a coisa21.

Assim, a partir da concepção privatista da propriedade, o bem estava completamente sujeito à vontade de seu proprietário, o qual poderia livremente dispor da forma que entendesse, sem necessitar prestar contas a terceiros ou à sociedade. A utilização do bem interessava...

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