Instituições Trabalhistas, Discurso e Direito: o Papel do (de um) Jurista na Renovação da Jurisprudência Brasileira

AutorSayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Páginas19-29

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Introdução

Ao iniciar seu A Justiça de Toga, Ronald Dworkin relata um singular episódio ocorrido entre duas personalidades que ficariam conhecidas entre os mais importantes juízes da história norte-americana: Oliver Wendell Holmes e Learned Hand. Em resposta à evocação do jovem Hand ("Faça Justiça, juiz!"), o realista e pragmático Holmes, então juiz da Suprema Corte, respondeu: "Não é esse o meu trabalho!" ao seguir para seu labor cotidiano que "supostamente não consistia em fazer justiça"1. Com este relato, somos iniciados em uma das mais consistentes reflexões contemporâneas sobre o papel da moralidade na interpretação e na teoria jurídica.

A partir do reconhecimento de que nenhuma proposição de direito determina, por si só, um único resultado possível, o autor convida o leitor a pensar sobre as distintas inserções que a valoração sobre justiça e moralidade desempenha nos estágios teórico, doutrinário e da decisão judicial. Com integridade, na reunião entre direito e moral, afirma Dworkin, seria possível "deixar de duvidar que a justiça tem um papel a desempenhar na determinação do que é o direito", para nos concentrarmos "na questão mais complexa e importante de saber, exatamente, que papel é esse"2.

A importância do sujeito e da valoração citada por Dworkin em suas múltiplas dimensões - é o que desejamos reter nesta passagem introdutória. E ao mesmo tempo explicitar alguns pressupostos simples, mas necessários: a) direito não se deduz do texto, b) a interpretação é constitutiva de seu significado, c) há limites no labor em instituições judiciais todavia, d) a valoração está presente em todos os estágios da teoria jurídica, e) é preciso compreender o papel da justiça e dos atores na determinação do direito.

A tais pressupostos gerais, acrescentamos a constatação de que direito não é só texto, é contexto, para agregarmos uma segunda nota introdutória sobre a natureza contraditória do direito do trabalho e a importância de sua interpretação após a avalanche que o abateu no final do século XX. Afinal, é da "natureza do direito do trabalho, de caráter intrinsecamente distributivo, ser constantemente testado pelos agentes do capital e do trabalho em sua luta pela apropriação da riqueza socialmente produzida", afirma Adalberto Cardoso3. Esta característica, segundo Cardoso, acarreta problemas de legitimação específicos da norma jurídica trabalhista, nos quais a existência de um "intrincado ambiente espaço-temporal de disputa, múltiplo em sua distribuição de recurso e nos resultados possíveis das ações normatizadas", denota o "rosto contemporâneo da luta de classes"4.

Se apreendermos como modelo operacional e provisório a ideia de que a ordem legal trabalhista se apresenta como subsistema social, delineado por expectativas que têm como

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referência a norma jurídica, produção e operação, o problema da legitimidade do direito do trabalho5 se coloca em dois âmbitos analíticos: nos mecanismos de produção e de operação do direito6. Afinal, "sabemos que as leis têm que ser aplicadas, e mesmo que capital e trabalho acolham como legítimos tanto os processos decisórios como o resultado das deliberações, ainda assim o direito resultante será interpretado nos tribunais (...) palco das disputas entre representantes de capital e trabalho pela interpretação da norma legal"7. É nesta segunda arena (de operação do direito) que se desenvolve a ação dos sujeitos que atuam nas instituições jurídicas. É nesta conjuntura específica que o direito é produzido pelo jurista, que antes de ser "operador do direito" é seu "intérprete".

Quando destacamos as externalidades do discurso jurídico (no caso de conflitos concretos do mundo do trabalho) não recusamos as internalidades do mundo do direito (estruturadas em torno de certas ideologias profissionais que postulam autonomia doutrinária). Muito pelo contrário, o terceiro pressuposto desta introdução tem como objetivo situar os discursos e as práticas jurídicas como intrínsecas a um campo de conhecimento duplamente determinado por relações de força específicas - que envolvem lutas de concorrência e conflitos de competência, bem como pela lógica interna do que se convencionou denominar "doutrina jurídica", e que estabelece o espaço dos possíveis e o universo das soluções "jurídicas"8. Se nos propomos a examinar o papel de um ator específico dentro de uma instituição judicial, não podemos deixar de registrar esta terceira observação conceitual.

Dotados de poder simbólico, os juristas estão inseridos em um universo próprio, o do campo jurídico: "lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica, que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social"9.

Reconhecendo o campo jurídico como o espaço de produção e explicitação de saberes, no qual distintas formas de competências, complementares e/ou antagonistas, se associam, buscamos examinar dois aspectos do trabalho de um protagonista que, no campo jurídico laboral, exerce com maestria os distintos modos de produção do saber, esgrimindo as competências complementares do doutrinador e do magistrado10 Mauricio Godinho Delgado.

No campo jurídico laboral, Mauricio Godinho Delgado dispensa apresentações. Mineiro de Lima Duarte, nasceu sob a égide da Constituição de 1946, em 13 de maio de 1953. Aos 22 anos bacharelou-se em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora. Sete anos após, tornou-se Mestre em Ciência Política, e aos 41 anos de idade, Doutor em Direito pela UFMG.

Sob a Constituição de 1988 exerceu a magistratura do Trabalho em Minas Gerais, onde foi empossado juiz substituto em novembro de 1989. Presidente de Juntas de Conciliação e Julgamento e Juiz Titular de Varas de Trabalho, atuou em Governador Valadares (1990), Varginha (1990), Itabira (1990-91), Contagem (1ª JCJ, 1991), e Belo Horizonte (1991 a 2004). Em 2004, ano da Emenda Constitucional n. 45 que ampliou a competência da Justiça do Trabalho, tornou-se Desembargador do Trabalho, por merecimento, no TRT da 3ª Região. Três anos e meio depois, tomou posse como ministro do Tribunal Superior do Trabalho em vaga destinada à magistratura trabalhista.

Jamais abandonou ou negligenciou o magistério, que exerce com destaque e relevo. Entre 1978 e 1992, exerceu a docência no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e, após, na Faculdade de Direito da UFMG. Segundo seu currículo oficial, divulgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em 2000 tornou-se professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, contribuindo para a fundação do mestrado em Direito do Trabalho. Com a posse no Tribunal Superior do Trabalho, desde novembro de 2007 passou a se dedicar ao mestrado e ao doutorado em Direito da PUC - MG e, atualmente, é professor de pós-graduação do IESB-Brasília.

Concentra sua produção nas áreas de ciência política, direito constitucional e direito do trabalho, com mais de oitenta artigos publicados em coletâneas e/ou revistas acadêmicas especializadas. Autor de mais de treze livros individuais, organizador de inúmeras obras coletivas, está presente diariamente em centenas de salas de aula espalhadas pelo Brasil. Em 11ª edição, seu Curso de Direito do Trabalho é certamente um dos mais consultados manuais brasileiros, festejado por alunos que, para além das regras que insistem em referenciá-lo como Delgado, 2012, com o jeitinho brasileiro, o denominam, informalmente Godinho.

Deste modo, este ensaio de homenagem se preocupa, na primeira seção (1), em situar a trajetória de Mauricio Godinho

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Delgado na tradição dos protecionistas clássicos, no labor do docente doutrinador. E na segunda seção (2), em sublinhar no labor do ministro julgador, a utilização de um capital jurídico em prol da ampliação dos espaços dos possíveis11, dos intérpretes, dos magistrados e, principalmente, dos agentes políticos, sociais e sindicais que sustentam um projeto protecionista promocional.

1. O magistério jurídico: o expansionismo e a proteção no/do direito do trabalho

No ambiente de desprestígio dos valores que orientam a regulação clássica do Direito do Trabalho, que caracterizou a passagem do século XX para o século XXI, o papel dos juristas na conservação de uma axiologia própria do protecionismo clássico12 foi fundamental no debate público brasileiro sobre o tema. Naquele contexto de crise paradigmática, foi de extrema importância a afirmação doutrinária do princípio protetor para a cultura jurídica, mormente quando reafirmado na obra de professores que exercem relevante papel formador do público universitário, com a socialização de conceitos básicos em Direito do Trabalho. É neste campo em que se situa Mauricio Godinho Delgado, dentre aqueles que persistiram afirmando a relevância dos princípios específicos do Direito do Trabalho para a estruturação do campo e para a proteção aos vulneráveis.

Sabemos que a discussão doutrinária sobre a proteção trabalhista remonta à própria tradição da cultura jurídica latino-americana, ressaltada pela obra seminal de Américo Plá Rodriguez, que a reconhece como razão de ser do Direito do Trabalho13. Cultivado por parte expressiva do juslaboralistas clássicos, o princípio de proteção, ao admitir a desigualdade fática, explicita a particularidade do Direito do Trabalho, campo que adquire autonomia por oposição a um sistema...

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