A inevitabilidade da negociação coletiva no setor público

AutorEnoque Ribeiro dos Santos/Bernardo Cunha Farina
CargoProfessor Associado da Faculdade de Direito da USP/Advogado
Páginas244-284

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1. Introdução

Em face dos recentes desdobramentos das greves de várias categorias de servidores públicos, que, por intermédio dos sindicatos representativos se acamparam em Brasília, no final do ano passado, reivindicando direitos de seus representados, o que culminou com a celebração de acordos coletivos de trabalho com o Estado, por meio do Ministério do Planejamento e pôs fim ao movimento paredista, com a aceitação do reajuste salarial de 15,8% proposto pelo Executivo, descortinaram-se novos horizontes para o revigoramento do instituto da negociação no setor público.

Em relação à participação do Estado como contratante de trabalhadores, na última década, o setor público se agigantou e hoje sem dúvida, a Administração Pública se apresenta como a maior empregadora. De uma força de trabalho nacional que se aproxima de cem milhões de pessoas, certamente a Administração Pública emprega direta e indiretamente, segundos dados do IBGE, um contingente superior a treze milhões de trabalhadores, daí sua relevância social e jurídica.

A negociação coletiva de trabalho, considerada uma das formas mais eficazes de pacificação dos conflitos coletivos, instituto moderno do direito coletivo do trabalho, deverá ser fomentada no âmbito da Administração

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Pública, na medida em que seu alcance transcende os meros interesses individuais dos servidores públicos para atingir toda a sociedade.

E é justamente sobre esta importante temática e enorme desafio que nos propusemos a examinar nas próximas linhas, tendo em vista contribuir, minimamente que seja, para o debate acadêmico e parlamentar no que tange à necessidade de pleno desenvolvimento da negociação coletiva no setor público.

A concepção de que as condições de trabalho no setor público, especialmente no que diz respeito aos subsídios e a manutenção de seu poder nominal, somente poderiam ser fixadas unilateralmente pelo Poder Executivo recua à concepção de Estado como ente englobador da sociedade, auto-ritário, arbitrário, ou seja, remonta aos princípios do Direito Administrativo, não em uma perspectiva de impor limites ao poder do Estado, mas sim num cenário de manutenção de privilégios mediante a criação de um espaço antagônico à atuação do particular e a dos Poderes Legislativo e Judiciário, o que impediu por muito tempo a sindicalização dos servidores públicos.

O direito à liberdade sindical, já consagrado pela Convenção n. 87 da OIT, é direito humano fundamental, portanto, preexistente ao direito positivo que somente pode reconhecê-lo ou declarar sua existência, do qual emanam os direitos à negociação coletiva e à greve, considerados os pilares do Direito Coletivo, indissociáveis numa relação tridimensional que perderia todo o sentido sem qualquer um desses seus três elementos constitutivos.

Nesta direção, se a Constituição Federal de 1988 garante ao servidor público o direito à livre associação sindical e à greve, o caminho estava aberto ao reconhecimento do direito ao exercício da negociação coletiva no setor público, como corolário lógico, o que a ratificação da Convenção
n. 151 da OIT somente veio a chancelar.

Neste quadro social e jurídico, passamos a analisar a complexidade da negociação coletiva de trabalho no setor público brasileiro.

2. A sociedade, o estado e a administração pública
2.1. Conceito de estado e sua atual relação com a sociedade

Em razão do tema do presente artigo ser a negociação coletiva de trabalho no setor público, forçoso é explanar, mesmo que perfunctoriamente, sobre Estado, Administração Pública e Sociedade, evidentes que são as imbricações existentes que muitas vezes chegam à sobreposição.

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Por ser o Estado uma criação jurídica, artificial, de situação de fato que foi se construindo e modificando-se ao longo da história, sua conformação, compreensão, relação entre seus elementos constitutivos, poderes e seu vínculo com a sociedade, decorrem mais de posição ideológica do observador, que propriamente do direito, ou seja, provém fundamentalmente de como o jurista vê a democracia, a sociedade, o Estado, e o papel deste naquelas1.

Oportuno trazer à consideração que o conceito de sociedade é polissêmico, admitindo diversas acepções e que, de acordo com Norberto Bobbio2, durante séculos, a expressão sociedade civil foi usada para designar o conjunto de instituições e de normas que hoje constituem exatamente o que se chama de Estado.

Para aquele autor foi a partir de Marx e Hegel que foi instalada a dicotomia sociedade civil versus Estado, mas indaga se atualmente a distinção entre sociedade civil e Estado ainda tem alguma razão de ser, pois afirma que ao processo de emancipação da sociedade em relação ao Estado totalitário seguiu-se o processo inverso de reapropriação do Estado à sociedade, dando surgimento ao Estado Social de Direito.

Ainda segundo Bobbio, trata-se “não só do Estado que permeou a sociedade, mas também do Estado permeado pela sociedade”. Contudo, alerta que a contraposição entre sociedade civil e Estado ainda persiste, numa convivência contraditória, dialética, não suscetível de conclusão, pois “sociedade e estado atuam como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna”.

Conforme se observa, em sua contínua construção e reconstrução histórica, o Estado, seu papel e sua relação com a sociedade vêm se modificando num processo dinâmico imbricado com o pensamento político vigente, desde os Estados totalitários, autocráticos, despóticos, até o Estado Democrático de Direito.

Segundo Lenio Streck e Bolzan de Morais3, a Democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, aberta ao tempo, às transformações e ao novo, em que indivíduos e grupos organizam-se em associações, em movimentos sociais e populares, trabalhadores se organizam em sindicatos,

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criando um contrapoder social que limita os poderes institucionais do Estado, além de fundar-se em outros pressupostos essenciais, tais como liberdade de informação e de expressão, autonomia para as associações e eleições livres. Tais pressupostos trazem em germe a soberania popular.

Ademais, para os mesmos autores, a fim de conhecer o Estado Con- temporâneo, ainda é necessário visualizá-lo a partir de seus elementos constitutivos, numa concepção clássica, quais sejam território, povo e poder com soberania e finalidade, isto é, seus elementos materiais, formais e teleológicos.

Tal concepção de Estado deixa claro que a sociedade é um de seus elementos constitutivos sem o qual aquele não existe, perde a razão de ser.

Neste sentido, dois de seus pilares fundamentais são: todo o poder emanar do povo, que o exerce diretamente ou por meio do voto; a sociedade ser a destinatária e a razão de ser do Estado, princípios consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 1º4.

Neste contexto democrático, seria um equívoco confundir a Adminis-tração Pública com o Estado. Aquela é essencial para administrar o Estado, mas não se confunde com este.

Por outro lado, o poder soberano do Estado, aqui entendido em seu conjunto (território, povo e poder com finalidade) é exercido perante outros Estados, no plano internacional. Já no plano interno do Estado, o poder soberano é da sociedade, nos termos do art. 1º, e seu parágrafo único, e art. 145 da Constituição Federal.

Por conseguinte, não se pode pensar em Estado dissociado do povo soberano sobre este, pois todo poder emana do povo que é um de seus elementos constitutivos essenciais sem o qual o Estado não existe.

Neste particular, importante a opinião de Norberto Bobbio6, para quem o papel assumido pelo Estado na atualidade é o de dar respostas às

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demandas sociais, ou seja, “nos últimos anos, o ponto de vista que acabou por prevalecer na representação do Estado foi o sistêmico”, ou seja, “a função das instituições políticas é a de dar respostas às demandas provenientes do ambiente social”.

Saliente-se, ademais, que o Estado Democrático de Direito representa a participação pública no processo de construção da sociedade, por meio do modelo democrático e a vinculação do Estado a uma Constituição como...

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