Índices urbanísticos: coeficiente de aproveitamento

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas157-261

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Subsiste le problème fondamental des architectes et urbanistes: la structure et l’environnement d’une ville peveunt-ils réellment contribuer à donner à l’urbanisme un visage humain, l’homme peutil dominer la ville qui est le produit de son activité?

Michel Prieur, Droit de l’environnement, 2004.

1. Introdução: o controle urbanístico do direito de construir

Uma vez constituído legalmente o lote, unindo terreno e infraestrutura citadina (urbana e comunitária), ele estará pronto para receber a futura edificação destinada ao abrigo humano. Complementando a urbanização (urbanização secundária), esta transformação há de ser feita levando em consideração o interesse público, que limita e condiciona o direito de construir (jus aedificandi). Assim dispõe o art.
1.299 do Código Civil: “o proprietário pode levantar em seu ter-reno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos”. Tais “regulamentos administrativos” (expressão antiga e inadequada que veio do Código Civil de 1916), ou melhor, as leis urbanísticas implicam controle público incidente sobre a atividade edificatória, pública ou privada.

Como dito no capítulo inicial, o controle público pode ser (i) técnico, referente à estabilidade, segurança e salubridade da edificação (direito da construção), ou (ii) urbanístico, concernente à correspondência ou compatibilidade do projeto edilício com o plano urbanístico. Logo, corres-

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pondência da edificação com a cidade. Segundo Hely Lopes Meirelles, o controle urbanístico das construções urbanas, atribuição específica do Município, “cuida da integração do edifício na cidade, visando harmonizá-lo com o complexo urbano”1. Este controle visa o ordenamento urbano – valor social que tem assento no art. 30/VIII da CF –, fazendo aquele autor referência ao engenheiro argentino Luís Migone para quem o divórcio entre o edifício e a cidade, ou seja, entre a parte e o todo, “é a causa de nossos males”2.

Portanto, a Lei nº 6.766/79, depois da reforma de 1999, passou a dispor no art. 4º/§ 1º: “A legislação municipal definirá, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento”. Este preceito estrutural deixa claro que o coeficiente de aproveitamento (CA) vincula-se ao zoneamento funcional intraurbano, que é um processo de divisão institucional do espaço urbano em áreas homogêneas, tanto do ponto de vista do uso quanto da ocupação do solo, modos de aproveitamento que se complementam. Ele implica, assim, limites à edificação e desta forma enseja o controle da densidade populacional. Isto porque tanto há o modelo elementar da habitação unifami-liar levantada sobre lote único – a “casinha pequenina”, que nem chega a utilizar todo o potencial permitido – quanto os modelos que intensificam muito a ocupação do solo, com finalidades diversas, habitacionais ou não: é o paradigma do arranha-céu de vidro (“glass box building”), símbolo da nossa época e que teve início em Chicago no final do século XIX, assim como, v.g., o castelo – inovação arquitetônica da Idade Média – é símbolo da sociedade feudal.

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Nesse sentido, o coeficiente de aproveitamento é um índice urbanístico fundamental (talvez o principal deles do ponto de vista econômico) porque revela, mediante cálculo simplex, o potencial construtivo do lote, fixado com base no interesse coletivo materializado no Plano Urbanístico Dire-tor. Ligado ao instrumento maior do zoneamento, concerne ele à ocupação do lote, à sua “densidade de construção”3, num conjunto com os demais índices, que não se aplicam isoladamente mas em bloco. De modo específico, o coeficiente define quantos metros quadrados de edificação, destinada a qualquer uso, é possível sejam levantados no lote, acima do solo ou abaixo do solo, conforme dispuser a lei local. O adendo final é importante porquanto o coeficiente, em princípio, não se aplica à parte subterrânea da edificação se os pavimentos não forem destinados ao abrigo humano.

Porém, a expressão que explicita este critério fundamental de controle urbanístico não está isenta de críticas, assim como “índice” ou “taxa” seja de “utilização” ou de “edificabilidade”, que também parecem inadequadas. Não se trata de aproveitamento do solo propriamente dito porquanto o uso e o parcelamento são também modos de aproveitamento urbanístico do solo, que se diferem da ocupação. Daí porque o correto entendo que seria coeficiente de ocupação do lote, à luz da corrente denominação francesa (“coefficient d’occupation des sols – COS”), muito embora o Code de l’urbanisme aplique-o ao “solo”, quando, corretamente, ele se refira ao lote: somente no lote, terreno servido de infraestrutura, pode haver edificação com destino urbano porquanto integrado no contexto da cidade e de suas redes.

Tecnicamente, no entanto, sem dúvida é um coeficiente no sentido de “indicador que relaciona grandezas de mesma natureza ou unidade de medida, como: área construída/ área do terreno, volume de água escoada/volume de água precipitada; valor da transformação industrial/valor do pro-

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duto interno bruto, etc.”4. Como multiplicador algébrico, o coeficiente de aproveitamento estabelece, portanto, uma proporção (clássico conceito da teoria da Arquitetura significando harmonia, simetria5), expressa mediante certo fator, entre área ocupada e área do lote, ou, se se quiser, metro quadrado do “terreno” e metro quadrado de edificação. Do ponto de vista arquitetônico, John Belcher, em obra do início do século XX, dá como exemplo – e bom exemplo – de desproporção um fragmento de Palladio que é o Palazzo Porto-Breganze (em Vicenza), onde haveria mais cinco eixos para a configuração total da fachada6. Mas trata-se de obra inacabada. Em outra escala, pode-se pensar também na relação entre a capacidade da infraestrutura urbana e o estoque do potencial construtivo estabelecido para a zona. Os dois níveis de análise, claro, se relacionam. Veja-se que há outros índices que estabelecem também proporções, como o caso do sentido técnico do gabarito (antiga instituição urbanística que relaciona a altura da edificação com a largura da via – distância entre os alinhamentos –, sentido hoje quase afastado entre nós), e a própria legislação refere expressamente tal relação em diversos momentos (v. art. 28/§ 3º do

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EC e art. 4º/I da Lei nº 6.766/79), demonstrando preocupação com ela.

Além do CA, há também outros índices que, sem se excluírem, buscam refrear, de modo diverso e distinto, a verticalização e a elevada densidade edilícia e residencial, que são (i) a quota mínima de lote por unidade habitacional (incidindo sobre a formação do condomínio edilício, cujas unidades ficam limitadas em número e em dimensão) e (ii) o tradicional gabarito de altura máxima. A Lei paulistana no 13.885/04, dita lei de zoneamento, logo no art. 1º define um e outro: a “quota mínima de terreno por unidade construída, expressa em metros quadrados de terreno ou número máximo de habitações por metro quadrado de terreno, define o número máximo de domicílios ou unidades construídas por lote e, indiretamente, a densidade demográfica máxima prevista para uma determinada zona ou porção do território”; já o gabarito de altura máxima de uma edificação é a “distância entre o piso do pavimento térreo e o ponto mais alto da cobertura, excluído o ático e a caixa d’água” (art. 1º/XXXVIII e XXV; compare-se a definição de gabarito com aquela antes referida). Cabe observar, porém, que o CA, conjugado com os demais instrumentos urbanísticos apresenta, além daquelas finalidades – sem dúvida as principais –, várias outras que examinaremos abaixo (definição do aproveitamento mínimo do lote, estabelecimento do seu potencial construtivo virtual, etc.).

Por sua relevância em área de interesse turístico, o gabarito (= limite) tornou-se até tema constitucional no Estado da Paraíba, o que dificulta sua modificação ao sabor dos interesses particulares conjunturais7. No Rio de Janeiro,

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com base no direito ao sol garantido pelo art. 461/XIII da Lei Orgânica, foi editada em 2000 a chamada “lei da sombra” (de atecnia grosseira, embora o Prefeito do Rio à época fosse o arquiteto Luiz Paulo Conde), cujo art. 1º dispõe: “Não será permitida, na área fronteira às praias, na orla marítima de todo o Município do Rio de Janeiro, a qualquer título, construção habitacional ou comercial com gabarito capaz de projetar sombra sobre o calçadão e/ou areal” (Lei Complementar municipal nº 47/2000)8. Apesar do critério da sombra ser vago, há acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidindo que tal lei dispensa “qualquer interposição regulamentar ou administrativa para a sua eficácia imediata e aplicabilidade direta, posto que impõe a necessária prevalência, na ordem normativa carioca, do valor de proteção ao meio...

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