Inconstitucionalidade do Preceito Primário do Tipo Penal do Art. 213 do Código Penal (Estupro)

AutorRodrigo Cesar Picon de Carvalho
Páginas18-26

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Introdução

O Código Penal de 1940, semelhantemente ao Código de 1890, descreveu o crime de estupro, esculpido no art. 213, como sendo “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (Brasil, 1940). Conjunção carnal é a cópula vagínica, o coito vaginal, a introdução do pênis na vagina. Assim, apenas mulheres poderiam ser sujeitas passivas do crime de estupro. Qualquer outra forma de violência sexual era tido como crime de atentado violento ao pudor, elencado no art. 214 do Código Penal, cuja redação era: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (Brasil, 1940), com penas semelhantes ao crime de estupro.

Em 2009, entretanto, surgiu a Lei 12.015/09, que reuniu os tipos penais de estupro e atentado violento ao pudor no primeiro, revogando o segundo, findando as diversas confusões doutrinárias e jurisprudenciais que existiam acerca dos dois tipos penais. Assim, a nova redação do crime de estupro ficou da seguinte maneira: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Brasil, 1940), tendo como pena a reclusão de seis a dez anos, além de ser tachado como crime hediondo (art. 1º, V, da Lei 8.072/90).

Dessa forma, atualmente qualquer pessoa pode ser vítima de crime de estupro, que não se restringe mais apenas à cópula vagínica. Qualquer ato sexual, anteriormente considerados estranhos – como as práticas de sexo anal e oral – pode, atualmente, ensejar crime de estupro; assim, o homem passou a poder ser sujeito passivo de tal crime.

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1. O crime de estupro

Para se verificar o crime de estupro, é preciso estarem presentes todas as elementares do tipo penal. Assim, é necessário que o agente constranja (force, obrigue), com violência ou grave ameaça, alguém (seja homem ou mulher) a praticar conjunção carnal (sexo vaginal) ou a praticar ou com que ele se pratique (de forma passiva) outro ato libidinoso (sexo oral, anal etc.). A ausência de qualquer um destes requisitos enseja a atipicidade da conduta.

Como dito anteriormente, constranger é forçar, obrigar alguém a fazer algo que não queira. É uma espécie de constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, que determina ser crime constranger alguém a fazer ou deixar de fazer o que a lei manda fazer ou se abster), porém praticado com a finalidade de atos libidinosos, seja conjunção carnal, seja ato libidinoso diverso (Greco, 2012, p. 460). O constrangimento ocorrerá pela violência (vis corporalis) ou pela grave ameaça (vis compulsiva).

Violência é a utilização de força física, com o intuito de subjugar a vítima, para ter com ela conjunção carnal ou ato libidinoso diverso (Greco, 2012, p. 460). Já a grave ameaça é a violência mental, também com o intuito de subjugar a vítima, porém deve ser aquela “séria e razoável, capaz de produzir na vítima o temor que a leve a ceder” (Jesus, 1991, p. 573). Ainda nos ensinamentos de Damásio de Jesus:

É necessário que se analise a ameaça levando em consideração o efeito por ela produzido na ofendida, capaz ou não de levá-la, pelo medo, a ceder. É preciso que seja grave, i.e., que o mal prometido seja idôneo para obter o efeito moral desejado, que o dano prometido seja considerável, de tal forma que a vítima, para evitar o sacrifício do bem ameaçado, ofereça sua própria honra (Jesus, 1991, p. 573).

Deve-se salientar que, ao contrário do que determina o crime de ameaça, o mal prometido pelo agente, para configurar grave ameaça, não precisa ser injusto. Conforme disserta Bittencourt (2009,
p. 802), é “irrelevante que a ameaça para obter os ‘favores sexuais’ seja justa ou legal. A sua finalidade especial determina sua natureza [...], transformando-a não apenas em ilegal, penalmente típica”. Greco (2012, p. 460) nos dá o exemplo de alguém que, sabendo da infidelidade de uma pessoa, a obriga a ter conjunção carnal, sob pena de contar tudo o que sabe ao outro cônjuge.

O sujeito passivo, atualmente, pode ser tanto homem quanto mulher, não mais havendo a separação que existia anteriormente em relação aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, existindo apenas no âmbito dos crimes militares (arts. 232 e 233 do Código Penal Militar). Da mesma forma, as mulheres também passaram a poder ser sujeitos ativos do crime de estupro, como autoras (e não mais apenas como coautoras ou partícipes) – podendo ser sujeito passivo do crime homens e mulheres, independemente de relações heterossexuais ou homossexuais.

A finalidade do agente que comete crime de estupro é a de satisfazer a própria lascívia, ainda que haja motivos secundários, como vingança (Nucci, 2008, p. 785). Neste caso, poderá o agente deter-minar que a vítima mantenha com ele conjunção carnal ou que mantenha outro ato libidinoso. Conjunção carnal, como dito anteriormente, é a cópula vagínica, a introdução do pênis na vagina. É própria de relação heterossexual e não é mais necessário, neste caso, que a vítima seja mulher – pode a mulher deter-minar, com violência ou grave ameaça, que o homem pratique sexo vaginal com ela. Para se consumir o crime, nesta modalidade, basta a introdução, ainda que incompleta, do pênis na vagina (Jesus, 1991,
p. 573), sendo a ejaculação mero exaurimento do crime.

É necessário salientar, entretanto, que pode o crime de estupro se consumar, ainda que não haja a cópula vagínica, desde que o agente utilize de atos libidinosos como atos prepatórios para o sexo – por exemplo, determina, ou realiza, sexo oral na vítima, agarre os seios ou órgãos genitais, dentre outros. A consumação, atualmente, não se dá apenas com o sexo vaginal, bastando, para tanto, qualquer ato libidinoso.

Em relação aos outros atos libidinosos, é imprescindível salientar que vale todo e qualquer ato, que não seja o sexo vaginal, cuja finali-dade precípua é satisfazer o desejo sexual, a libido do agente. Prado (2001, p. 601, apud Greco, 2012,
p. 462) disserta alguns atos que são considerados atos libidinosos diversos da conjunção carnal:

Fellatio ou irrumatio in ore, o cunnilingus, o pennilingus, o anninligus (espécies de sexo oral ou bucal); o coito anal, o coito inter femora; a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores etc.) da vítima; a contemplação lasciva; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo, mão), mecânicos ou artificiais, na via vaginal, anal ou bucal, entre outros.

Atualmente, é necessário salientar que o beijo lascivo se encontra em discussão sobre a possibilidade, ou não, de se adentrar no rol de atos libidinosos capazes de ensejar crime de estupro. Existem correntes prós e contra. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, possui decisões a favor, como no caso in comento:

Habeas corpus. Atentado violento ao pudor. Condenação. Inépcia da denúncia. Inocorrência. Descrição su-

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ficiente ao exercício do direito de defesa. Atipicidade da conduta. Atos libidinosos demonstrados. Beijo lascivo. Configuração do crime. Exame aprofundado das provas. Impossibilidade. Ordem denegada. 1. Não há falar em inépcia formal se a denúncia descreveu a conduta delituosa de forma suficiente ao exercício do direito de defesa, coma narrativa de todas as circunstâncias relevantes, nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal. 2. Hipótese em que o órgão acusatório apontou objetivamente o ato criminoso imputado ao paciente, consistente na prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal, mediante violência presumida. Foi descrito que o paciente teria atraído a menor para sua residência, após o que “agarrou” e “beijou” a vítima, com 12 anos de idade, sem o seu consentimento. Narrou-se, ainda, que em consequência dos atos do paciente a vítima estaria com o zíper de suas vestes aberto. 3. É pacífica a compreensão desta Corte Superior de Justiça no sentido de que o beijo lascivo pode constituir ato libidinoso diverso da conjunção carnal, hábil a caracterizar o delito descrito na anterior redação do art. 214 do Código Penal, em sua forma consumada. 4. No caso, as instâncias ordinárias, analisando detidamente as provas produzidas nos autos, concluíram que o paciente praticou atos libidinosos contra a vítima, jogando-a na cama, beijando-a de forma lasciva e abrindo o zíper de sua roupa. Tais atos, como visto, são suficientes para caracterizar o delito pelo qual foi condenado. 5. Não se mostra possível, na via eleita, alterar a conclusão a que chegaram o Juiz e o Tribunal de origem acerca dos fatos, pois inviável, nesta sede, analisar profundamente as provas produzidas. 6. Ordem denegada (STJ, Habeas Corpus HC 105673 CE 2008/0095693-8, Relator: Maria Thereza de Assis Moura, Publicado em 19 de setembro de 2011).

Alguns doutrinadores, contudo, discordam de tal posição, como Neves (2015), que acredita ser um desvio da finalidade do crime de estupro condenar alguém por um beijo lascivo.

É preciso deixar bem esclarecido que não defendemos tal conduta – longe disso – queremos, certamente, propor a refiexão da conduta do exemplo acima ter o liame suficiente para caracterizar o delito de estupro. Será que nesse caso há estupro? Conforme afirmado acima em outro capítulo, para nós, não. Por mais que seja ruim o beijo e por mais feia que seja a pessoa que o forçou e, também, se o fato não ocorreu com o emprego de violência ou grave ameaça, não podemos condenar alguém a cumprir uma pena de, pelo menos, 6 (seis) anos de reclusão, isto é, com a mesma gravidade que se pune um homicida. A ‘secagem’ da lei pode, muitas vezes, nos levar a determinadas injustiças.

Porém, é...

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