A incompreendida concepção de processo como “situação jurídica”: vida e obra de James Goldschmidt

AutorAury Lopes Júnior; Pablo Rodrigo Alflen da Silva
Páginas23-48

Aury Lopes Júnior. Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Ciências Criminais da PUCRS. Professor Titular de Direito Proc.Penal na PUCRS. Pesquisador do CNPq – Produtividade em Pesquisa. Membro do Conselho Diretivo para Iberoamerica da Revista de Derecho Procesal (Espanha). Advogado Criminalista.

Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de Direito Penal e Processual Penal da UNIVATES e da ULBRA. Professor no Curso de Especialização em Direito Penal e Política Criminal da UFRGS. Pesquisador credenciado ao CNPq. Instrutor do Tribunal de Ética e Disciplina da OABRS. Membro da Gesellschaft für Völkerstrafrecht (Berlin). Advogado Criminalista.

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I Aportes iniciais

Em 28 de junho de 20091 completaram-se 69 anos do falecimento do jurista alemão JAMES PAUL GOLDSCHMIDT. Considerado por muitos como um dos maiores processualistas de todos os tempos, GOLDSCHMIDT, como afirmado por EB. SCHMIDT, teve “o mérito imperecível de ter submetido o ‘pensamento processual’ a uma ‘crítica’ e de ter desenvolvido rigorosamente a heterogeneidade fundamental do modo de contemplar material e processualmente o direito”2. Em virtude de sua perspicácia invulgar e originalidade de suas idéias, chegou-se a afirmar que GOLDSCHMIDT tinha a “rara capacidade de adentrar na mais profunda das profundezas”3. Em um artigo escrito em memória aos dez anos de seu falecimento, em 1950, ERNST HEINITZ qualificou-o “como professor de grande vitalidade e temperamento, como homem de humor e, em certo sentido, representante típico dos cientistas do estilo antigo”4. Considerado pelos nazistas alemães, primeiramente, como um “embaixador e divulgador da cultura alemã”5, após a ascensão do partido ao poder, no entanto, restou por se tornar mais uma vítima do nacional-socialismo. O presente ensaio apresenta uma homenagem in memoriam a este grande jurista.

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II James Paul Goldschmidt, uma vida de jurista: breve síntese biográfica

Oriundo de família judaica, JAMES PAUL GOLDSCHMIDT nasceu em 17 de dezembro de 1874, na cidade de Berlim, Alemanha. Seu pai, ROBERT GOLDSCHMIDT, era banqueiro e seu irmão, HANS WALTER GOLDSCHMIDT, foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de Köln. Com seis anos de idade, JAMES GOLDSCHMIDT ingressou na escola francesa (Französisches Gymnasium) em Berlim6. A frequência a escola francesa, que encerrou em 1892 com a realização do vestibular, capacitou-o a redigir, em período posterior de sua vida, uma parte de seus trabalhos em francês, italiano e espanhol, posto que ali lhe haviam sido proporcionados conhecimentos em tais idiomas. E justamente em razão disso, ele permaneceu um período de sua vida estreitamente vinculado com a cultura francesa.

Na virada de 1892 para 1893, Goldschmidt começou seus estudos de Direito na Ruprecht-Karl Universidade de Heidelberg e um ano mais tarde se transferiu para a Friedrich-Wilhelm Universidade de Berlim. Nas cátedras de RUDOLF VON GNEIST e de JOSEF KOHLER, GOLDSCHMIDT aprendeu Direito Penal, Processo Penal e Processo Civil (matérias estas que, mais tarde, ele mesmo também lecionou). Na cátedra de HUGO PREUß, o redator da Constituição do Império de Weimar, GOLDSCHMIDT estudou Direito do Estado. Em 1895, concluiu seus estudos e realizou o primeiro Exame Estadual em Direito (ersten juristichen Staatsexamen) e em dezembro deste mesmo ano apresentou sua tese doutoral intitulada “A teoria da tentativa perfeita e imperfeita” (“Lehre vom unbeendigten und beendigten Versuch”).

Até a realização do seu segundo Exame Estadual em Direito (zweiten juristichen Staatsexamen), no ano de 1900, GOLDSCHMIDT atuou como estagiário do Serviço Judiciário prussiano e, após isso, trabalhou como assessor no Serviço Judiciário e preparou sua tese de habilitação, concluída em junho de 1901. Neste mesmo ano ele apresentou a tese de habilitação à cátedra, em Berlim, intitulada “A teoria do direito penal administrativo” (“DiePage 26 Lehre vom Verwaltungsstrafrecht”), a qual foi desenvolvida sob orientação de JOSEF KOHLER e FRANZ VON LISZT7. Após a habilitação, GOLDSCHMIDT – além de sua atividade de assessor – começou a proferir, na qualidade de docente privado, suas primeiras palestras na Universidade de Berlim, além de desenvolver muitas atividades científicas e elaborar diversos trabalhos científicos8.

Em 1906, GOLDSCHMIDT casou-se com MARGARETE LANGE, de cujo casamento nasceram quatro filhos: WERNER (1910-1987), ROBERT (1907-1965), VICTOR (1914-1981) e ADA (1919-?). WERNER e ROBERT, assim como o pai, foram professores de direito, sendo que o primeiro atuou em diferentes universidades de Buenos Aires e, o segundo, atuou em inúmeras universidades na América Latina, particularmente, em Córdoba (Argentina) e na Venezuela. O filho mais novo, VICTOR, estudou na França, onde, como professor, lecionou Filosofia e História em diversas Universidades Francesas. Sobre o destino da filha ADA, não se tem conhecimento.

Após sete anos de atividade como docente privado, em 23 de agosto de 1908, GOLDSCHMIDT tornou-se oficialmente professor extraordinário e, em 1919, professor ordinário na Faculdade de Direito na Universidade de Berlim.9

Na Primeira Guerra Mundial, GOLDSCHMIDT foi Presidente do Senado no Tribunal Imperial de Arbitragem para questões econômicas (“Reichsschiedsgericht für Wirtschaftsfragen”). Este Tribunal era mantido para disputas havidas no setor econômico, assim como, por exemplo, para questões relacionadas ao controle do comércio exterior e abastecimento de energia.

Em 1919, GOLDSCHMIDT recebeu uma Cátedra de Direito Penal no Instituto de Criminologia da Universidade de Berlim, o qual ele dirigiu conjuntamente com seu colega EDUARD KOHLRAUSCH. No mesmo ano, foi chamado para atuar como colaborador, junto ao MinistérioPage 27 da Justiça do Império, na reforma processual penal10, tendo recebido o encargo de elaborar o Projeto de um novo Código de Processo Penal. Antes mesmo da Primeira Guerra Mundial ele apresentou o, até hoje considerado, mais moderno Projeto de Código de Processo Penal (Entwurf einer Strafprozessordnung). Em seu Projeto, GOLDSCHMIDT previu a consequente efetivação do processo acusatório por meio da eliminação dos resquícios do processo inquisitório. Além disso, o projeto previu a possibilidade de recursos a todas as instâncias penais e a participação geral de leigos na primeira instância, no âmbito do Tribunal do Júri (tendo em vista, aqui, seu vasto conhecimento do modelo processual francês). GOLDSCHMIDT procurou vincular à prisão preventiva pressupostos muito específicos para a sua decretação. Este projeto, que consistiu na primeira tentativa de reforma penal à época, foi apresentado pelo Ministro da Justiça do Império alemão, EUGEN SCHIFFER, no ano de 1919, ao Senado Imperial, e ficou conhecido como o “Projeto GOLDSCHMIDT/SCHIFFER (“Entwurf Goldschmidt/Schiffer”). À época o Projeto encontrou forte oposição no Senado Imperial e consequentemente não foi aprovado. Contudo, em 1922, o Ministro da Justiça do Império, GUSTAV RADBRUCH, apresentou o “Projeto de Lei para Reorganização dos Tribunais Penais” (Entwurf eines Gesetzes zur Neuordnung der Strafgerichte), o qual inspirou-se substancialmente no projeto elaborado por GOLDSCHMIDT, demonstrando, assim, o porquê do projeto de GOLDSCHMIDT ter sido caracterizado como a “última tentativa de criação integral de um direito processual penal liberal-democrático”.11

Nos anos de 1920 a 1921, GOLDSCHMIDT, na qualidade de Decano, dirigiu a Faculdade de Direito de Berlim e no ano de 1927 se tornou membro do Serviço Oficial de Exame Científico (Wissenschaftlichen Prüfungsamtes).

Além de sua vasta atividade científica GOLDSCHMIDT ministrava até 12 horas de palestras semanais, que eram sempre minuciosamente elaboradas. Seus alunos o descreviam como um professor com antiga disciplina prussiana e um forte sentimento de dever, porém, sempre procurava ministrar suas aulas com bom humor.

Após a ascensão do Nacional-Socialismo ao poder, GOLDSCHMIDT foi o primeiro professor daPage 28 faculdade de direito de Berlim impedido de prosseguir na atividade de ensino. Por meio de Decreto do Ministro da Cultura, de 29 de abril de 1933, ele foi o único membro da faculdade de direito, junto a outros 19 da faculdade de medicina e filosofia, a ter imediatamente suspensas as suas atividades no cargo. No mesmo dia, GOLDSCHMIDT requereu junto ao Ministério da Justiça a revogação da medida, a qual, no entanto, foi negada, sob o argumento de que o Ministério da Justiça havia determinado que não-arianos não poderiam lecionar nas cátedras de Direito Penal e de Direito do Estado12.

No semestre de inverno, na virada de 1933 para 1934, GOLDSCHMIDT, em razão do “Decreto de restabelecimento funcional” publicado em 1933, foi transferido para outra Escola de Ensino Superior, o que, no entanto, somente no semestre de verão de 1934 foi possível, com a sua transferência à Escola de Ensino Superior de Frankfurt am Main. Em razão de sentimentos hostis do pessoal docente – principalmente do Decano – ele se afastou do setor de ensino, embora já estivesse disposto a fazê-lo. Mediante requerimento, GOLDSCHMIDT, no semestre de inverno de 1934 para 1935, foi transferido novamente à Berlim e ao mesmo tempo se exonerou de suas obrigações oficiais. Nesse meio tempo ele proferiu inúmeras palestras na Espanha e publicou diversos trabalhos em espanhol, italiano e francês. E a partir daí passou a se orientar cada vez mais por temas filosóficos. Um ano...

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