Justiça de Transição - In Dubio pro Humanitate

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoEx-professor das Universidades Federais do Paraná e Santa Catarina
Páginas6-19

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1. Dogmática, zetética e crítica da justiça de transição

Um dos problemas nucleares enfrentados pela filosofia do direito é o do choque de princípios, tema com o qual ela se reencontra com o direito constitucional na questão dos assim chamados 'casos difíceis', os hard cases do direito americano. Estes são definidos como envolvendo situações que admitem, ao menos aparentemente, mais de uma solução, seja em virtude da vagueza ou obscuridade da norma incidente, seja em face da existência de duas ou mais igualmente aplicáveis, seja ainda em face de lacunariedades da legislação.

Quando as soluções propostas para tais entraves estão em oposição, sendo todas elas fundamentadas em pressupostos igualmente válidos, geram-se situações de conflito designadas antinomias.

Antinomias propriamente jurídicas são as fundamentadas na legislação, ou seja, verificam-se quando mais de uma lei é aplicável ao problema jurídico a equacionar. São os conflitos que envolvem a hierarquia das leis e sua utilização no espaço e no tempo, cuja apreciação está normalmente ao alcance dos juristas, com fulcro na constituição, na legislação ordinária e na jurisprudência. Mas quando os embates ocorrem entre dispositivos da própria constituição, já não se fala em 'conflitos de leis' mas em antinomias, que podem ser de dois tipos: principiológicas e ideológicas.

As antinomias principiológicas ocorrem ao nível dos princípios gerais de direito declarados na constituição ou a ela subjacentes. As ideológicas se verificam entre os comandos mais gerais do ordenamento e constituem antecedentes dos próprios princípios. Essa divisão é meramente didática, pois na verdade todos os valores e crenças refletidos na ordem jurídica são redutíveis a princípios. A ideologia do direito envolve preceitos de natureza religiosa, ética e política, e mesmo científica, como é o caso dos pressupostos do ordenamento considerados racionais2.

No estudo dos direitos humanos, especialmente quanto à eficácia da legislação que os declara e garante, uma situação particularmente relevante se apresenta: como lidar com a necessidade de preservá-los na plenitude de seus princípios, quando um governo autoritário, em face da iminente restauração do Estado de Direito e consequente substituição por um governo democrático, trata de impedir a investigação, processamento e punição de delitos contra os direitos humanos praticados na vigência do autoritarismo.

Este e outros problemas decorrentes da passagem de um regime político autoritário para uma ordem democrática exigem soluções jurídicas que repercutem no contexto ético, político e social do novo regime. É um conjunto interdisciplinar que vem sendo caracterizado como justiça de transição.

A remoção de uma legislação autoritária não ocorre com a mera transferência do poder político a dirigentes democraticamente eleitos, pois ela acaba por incorporar-se ao sistema jurídico da nação, ao abrigo das novas disposições constitucionais. Daí a ocorrência de antinomias em torno da eficácia dos direitos humanos.

No caso da justiça de transição tem-se uma dessas antinomias, ao mesmo tempo principiológica e ide-

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ológica, a qual opõe, de um lado, o direito das vítimas da opressão, inclusive seu contexto doméstico e social, e correspondente dever do Estado de proporcionar-lhes a devida assistência e um mínimo de satisfação a seus anseios por justiça, e, de outro, o dever do Estado de assegurar a ordem social e a segurança dos cidadãos, o que poderia exigir o sacrifício daqueles anseios.

Daí a antinomia: o que é mais importante: o esquecimento, a varredura para 'debaixo do tapete da história', da memória das iniquidades cometidas, ou resgatar essa memória com o objetivo de punir os responsáveis, ou, pelo menos, tentar minimizar os efeitos dos malefícios praticados, em face da impossibilidade de restauração do statu quo ante.

O Brasil e outros países da América do Sul passaram a vivenciar estas questões à medida que eram trazidos ao conhecimento público os atentados aos direitos humanos praticados por agentes das ditaduras instaladas nesses países a partir dos anos sessenta. Trata-se de delitos de extrema gravidade, considerados de lesa-humanidade eis que chocam a consciência da humanidade e assinalam um retorno à barbárie, visto serem incompatíveis com o progresso da civilização.

Além dos problemas que a nova constituição deve regrar, especialmente por meio de disposições transitórias, surgem inúmeras questões de ordem judicial e político-admi-nistrativa que dizem respeito ao interesse de toda a sociedade e causam um crescente mal-estar, não somente no círculo social das vítimas, como também na consciência mesma do povo, o que tem levado os dirigentes do novo Estado de Direito a tentar responder às queixas, reclamações e exigências que lhe são apresentadas, enfim, dar uma satisfação à opinião pública, as mais das vezes veiculada através da mídia.

A justiça de transição vem a ser esse conjunto de medidas que, ao abrigo da legislação pós-autoritária, possam atenuar os efeitos do autoritarismo e, assim, responder à questão da eficácia do direito em períodos de transição política. Esse conceito não se atém à dogmática da legislação, mas abrange todo o conjunto de providências, no campo jurídico, político e social que um governo democrático toma ou deve tomar quando sucede a um governo autoritário que, através de seus agentes, praticou, tolerou ou acobertou ações atentatórias aos direitos humanos. Em suma, ajus-tiça de transição visa a atender ao clamor generalizado por justiça num contexto de transição democrática, o que exige uma atitude política dos novos governantes com repercussão nos três poderes.

Este é um conceito amplo, com o qual é possível tratar do tema sob a perspectiva da teoria geral do direito. Mas o que tem prevalecido é um sentido mais restrito, uma análise dogmática, tendo por núcleo o problema da antinomia entre uma legalidade autoritária e uma nova legalidade, atendidas as características de cada país e as normas dimanadas do direito internacional. Nessa perspectiva, há uma tendência a que a teoria jurídica se atenha à situação brasileira e a de outros países da Ibero-américa que vivenciaram os horrores das ditaduras, o terrorismo oficial de que eram vítimas os próprios cidadãos. É um tipo de análise onde prevalece a confrontação entre soluções preconizadas pelo direito interno de cada país com a legislação internacional.

Mas a especulação doutrinária ensejou a ampliação do objeto de forma a abranger todas as situações análogas ocorridas no planeta, tomando-se como dies a quo o julgamento de Nu-remberg. Mas, ainda que se dê prevalência ao contexto ibero-americano, onde se vivenciaram os horrores de um autoritarismo que ignorava sistematicamente os direitos humanos, é possível uma análise zetética e crítica das situações envolvidas pela justiça de transição.

Embora a expressão possa referir-se a fatos que remontam às guerras e revoluções que destruíram a organização política medieval e o absolutismo monárquico, trata-se de tema relativamente novo, que tem sido tratado sob os mais diversos enfoques. Assim, privilegiam-se os aspectos administrativos, constitucionais e de direito internacional, mas não existe tratamento uniforme da matéria, e dificilmente se acham trabalhos que contemplem a interdisciplina-riedade própria da questão. Salvo a pesquisa histórica, no sentido de restaurar a verdade de fatos muitas vezes ocultos ou dissimulados, não há uma incursão filosófica ou ensaios de uma teoria jurídica geral. Isso a despeito do forte e inafastá-vel conteúdo ético do que se entende por justiça de transição.

A especulação doutrinária, todavia, ensejou a ampliação do objeto de forma a abranger todas as situações análogas ocorridas no planeta. E assim, fala-se em justiça de transição para abranger as revoluções ocorridas após o fim da Guerra Fria, quando, nos países do leste europeu e da África, movimentos de opinião pública passaram a exigir a punição dos responsáveis por atrocidades cometidas nos regimes anteriores.

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Entretanto, mesmo se nos ativer-mos ao ponto de vista dogmático, não se afasta o conceito amplo, presente em muitos autores que se dedicam ao tema, notadamente em direito constitucional. Mas tal amplitude conceitual contribui para desviar o instituto de seu objetivo principal, a justiça. É que se dá maior ênfase ao aspecto transição do que ao aspecto justiça. E a transição está normalmente vinculada aos objetivos do Estado, o que legitima que, em nome da ordem, da segurança, do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, sejam esquecidos os crimes da ditadura. Mais ainda, que sejam perdoados. Valores que as ditaduras sempre desrespeitaram.

O que então se pretende é um debate que possa suprir ao menos em parte esta lacuna e, como teoria geral, o que então proponho é uma análise zetética e crítica da justiça de transição.

O ponto de vista zetético leva à interpretação das leis da transição democrática dentro de um contexto transdisciplinar que requer sua adequação a alguns valores tidos como pressupostos metaéticos, tais como, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a paz social, a justiça material e outros. O que possibilita que se vá além dos textos legais, e mesmo ao afastamento destes para fazer prevalecer esses valores. Mas na prática eles muitas vezes confundem-se com objetivos ideológicos ou político-par-tidários.

É uma zetética intradogmática, que desemboca na hermenêutica jurídica. Mas há igualmente uma zetética metadogmática, ou transdogmática, que envolve a interdisciplinariedade das ciências jurídicas e sociais. Este enfoque conduz à...

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