Impossibilidade de repetição quando ocorre a tredestinação das contribuições sociais

AutorFernando Gomes Favacho
CargoMestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor dos Cursos de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP e do IBET-Sorocaba. Advogado
Páginas143-155

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"Estou vendo um dos precedentes: autorização para destinar parte da arrecadação da CPMF a cobrir débitos do Ministério da Saúde com o FAT - não conhecemos da ADI (o que me dá um certo remorso, diante do que veio a suceder posteriormente)" (Ministro Sepúlveda Pertence, ADI 2.925-8-DF, DJ 4.3.2005).

Introdução

É notória a importância da tributação promovida pela União através das contribuições sociais. Essa forma de arrecadação - em que o quantum passa a ter uma destinação específica, como as contribuições para a intervenção no domínio econômico do art. 149 da Constituição, ou as contribuições para a seguridade social do art. 195 - ocuparam 45,61% da receita tributária em 2008.1

A par do mandamento constitucional, vemos a todo momento a tredestinação dos tributos no Brasil. Graças à crescente desvinculação de receitas, desvio ilegal de recursos ou mesmo à falta de ação da Administração - entendido isto como um não cumprimento da norma de destinação -cresce na doutrina pátria o pensamento de que o contribuinte, moral e legalmente atingido por tais atos, possa ser ressarcido de seus débitos tributários.

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Para refletir sobre a tese, o texto começa contando a mudança histórica e o sentido atual da tributação, bem como a justificação do Estado e de seu poder para a cobrança de tributos. Em seguida, expõe os sentidos dos termos "finalidade" e "des-tinação", para depois tratar da separação ainda existente entre o direito tributário e o financeiro no país. Finalmente, traz a crescente doutrina sobre a possibilidade de repetição dos tributos tredestinados e, ainda, emite nossa opinião de que não se tem (ainda) tal forma de pressão e controle dos gastos públicos pelo contribuinte no país.

1. A evolução da tributação

A historicidade, intrínseca à interpretação, nos faz reconstruir tempos em que os tributos eram prestações in labora, in natura ou in pecunia, como mostra Dejal-ma de Campos:2 "Tributo provém do verbo latino tribuere: tributum, que significa repartir entre as tribos. Nas comunidades primitivas, o tributo estava na dependência da satisfação das necessidades coletivas e dos caprichos do chefe, que o exigia de seus súditos. Eram prestações in labora, in natura ou in pecunia, exigidas pela força e arbitrariedade".

Aliomar Baleeiro,3 por sua vez, constrói outra significação: "Primitivamente, a palavra 'tributo' tinha o sentido que damos, hoje, às reparações de guerra. (...) Devia pagá-lo porque estava à mercê do que o subjugara pelas armas. As guerras eram feitas, muitas vezes, para esse fim apenas".

Desde as tribos e as reparações de guerra até nosso conceito atual, passamos pelo pós-escravismo da Idade Média, em que as terras pertenciam aos senhores feudais, e os milhares de servos, que nelas trabalhavam, tinham a obrigação de lhes pa-gar tributos, seja entregando aos seus senhores parte de sua produção, ou, o que era mais comum, trabalhando gratuitamente no cultivo das terras de seus senhores durante dois ou três dias da semana.

A primeira limitação constitucional ao poder de tributar aparece somente no ano de 1215. Conforme Ernane Galvêas:4 "Até então, o soberano aumentava discri-cionariamente os tributos, conforme os requerimentos administrativos de sua Corte ou as necessidades de equiparar as forças militares do Reino. Esse absolutismo tributário foi quebrado, em 1215, na Inglaterra, quando os barões, proprietários das terras, forçaram o Rei João-sem-terra a assinar a Magna Carta, segundo a qual 'nenhum tributo poderá ser lançado na Inglaterra, sem o consentimento geral (...)'".

Na Revolução Francesa de 1789, com a aprovação da "Declaração dos Direitos", estabeleceu-se que a contribuição para custear a administração pública e os serviços administrativos deve ser repartida entre todos os cidadãos, de acordo com sua possibilidade, o que já nos traz a ideia de responsabilidade ética e capacidade contribu-tiva como a conhecemos.

O Brasil acompanhou a evolução do conceito de tributo na Europa, já que no início da tributação no país aplicava-se a forma lusitana.5 No período colonial, esteve submetido a um sistema fiscal feudal, constituído por quintos, gravando a mineração, dízimos, onerando os produtos da terra e frutos do mar; e tributos extraordinários sob a denominação de derrama e finta.6 Ainda hoje temos como principais tributos arrecadatórios os que oneram a circulação, como o ICMS, e os que atingem a renda das empresas, como o Impos-

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to de Renda e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido.

Das tantas revoltas, como a Inconfidência Mineira, até verdadeiras revoluções, como a americana e francesa, os tributos parecem estar sempre presentes, protagonizando tantos acontecimentos. E isto porque não há falar em justiça sem justiça tributária, ou política sem política tributária. Como consta nas primeiras linhas de O Mito da Propriedade, "Numa economia capitalista, os impostos não são um simples método de pagamento pelos serviços públicos e governamentais: são também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou distributiva".7

2. A finalidade e a destinação da tributação

O ruído comunicacional causado pela adoção do mesmo suporte físico para diversos significados pode ser percebido em várias passagens do texto legal. Desta feita, o estudo do "porque" da tributação nos leva de imediato a uma desambiguação: a finalidade, a repartição e a destinação.

Adotamos a finalidade como o objeti-vo genérico dos tributos. Arepartição trata da relação entre os entes federados sobre a divisão do que foi arrecadado. A destinação é norma que designa o destino do que foi arrecadado, que se divide em normativa efática.

Finalidade: motivação ou objetivo do tributo.

Repartição: divisão do arrecadado entre os entes federados.

Destinação normativa: previsão legal do destino do que for arrecadado.

Destinação fática: aplicação do que foi arrecadado.

2. 1 A "finalidade" constitucional dos tributos

Toda norma de direito público deve ter como fim último o exposto no Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

"(...) assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias."

Se toda norma de direito público tem finalidade pública, todo ingresso público também tem a mesma motivação. A própria Constituição Federal expressa, através da materialidade, da destinação ou mesmo de pressupostos ao exercício da competência tributária que toda tributação possui um objetivo público. No art. 145, II, as taxas podem ser instituídas "em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição"; e a contribuição de melhoria deverá ser "decorrente de obras públicas". No art. 148, parágrafo único, se obriga que a aplicação dos recursos provenientes de empréstimo compulsório deverá ser "vinculada à despesa que fundamentou sua instituição". O art. 149 diz que as contribuições deverão ser instituídas "como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas"; o § 1o, que a contribuição dos servidores dos Estados, Distrito Federal e Municípios servirá "para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário". O art. 149-A é autoexplicativo: os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição "para o custeio do serviço de iluminação pública".

A referência à motivação dos tributos encontra-se, ainda, no art. 154, II (a União poderá instituir, na iminência ou no caso

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de guerra externa, impostos extraordinários, os quais serão suprimidos, gradativa-mente, "cessadas as causas de sua criação"); no art. 167, IV (vedação da "vincu-lação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita"); e no art. 195, § 4o (a lei poderá instituir outras fontes "destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social").

A longa explicação é também para afirmar: não é elemento unicamente da norma tributária sua finalidade pública. Toda norma de direito público tem esse fim. E mesmo as de direito privado não podem ultrapassar os limites do bem-estar social. Não poderia o tributo ter "fins particulares". Por isso, dizer que o fim de certo tributo é público não o diferencia em nada, não cria uma classe em que encontramos exclusivamente os tributos.

Mas é o que vem repetido internacionalmente em trabalhos de juristas8 ou em disposições legais.9 Sem dúvida dizer que o fim das Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico é interferir no domí-nio econômico pode fazer diferença entre outras espécies de contribuição. Mas dizer que o fim da receita tributária é público o diferencia das multas? Ou de outras formas de arrecadação do Estado? Certamente não. A receita da multa também tem fim público. Mesmo a indenização, que é mera reparação patrimonial, tem fim público.

2. 2 Relação tributária e relação financeira

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