A impossibilidade de indenização por abandono afetivo sob o prisma da teoria da perda de uma chance

AutorHélio Veiga Jr./Patrícia Borba Marchetto
Páginas377-411

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Apresentação

Em tempos de pós-modernidade líquida em que se pode veriicar a fragilidade das relações interpessoais, tornou-se necessário estudar a respeito dessa fragilidade dentro da seara familiar, de modo a perceber, assim, uma intervenção do Judiciário que contemporaneamente lida com a situação de ter que tutelar casos em que se encontra uma colisão de direitos fundamentais familiares como o afeto e a liberdade afetiva. Desta feita, tem-se de um lado o direito à liberdade afetiva de um genitor que poderá, em determinadas situações, ser contrário ao direito ao afeto de seu respectivo ilho. Nessa colisão, pensar-se-ia, assim, sobre a relevância de um dos direitos frente ao outro. Entretanto, com uma análise mais detida acerca da situação jurídica, a qual apresenta o desaio de se analisar o abandono afetivo com a respectiva busca pela indenização quando constatada sua ocorrência inclusive sob o prisma da teoria da perda de uma chance, veriica-se a impossibilidade de se proceder à reparação pecuniária ao ilho que não obteve afeto do genitor, justamente porque o direito de família não pode monetizar

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o afeto, tornando-o um valor subjetivamente imposto a cada um como pena por não amar. Uma vez veriicada situação em que o genitor(a) cumpriu com seu dever material de cuidado, muito embora não tenha sido capaz ou não tenha tido vontade de conceder afeto, não se poderá responsabilizar esse genitor(a) que omitiu afabilidade perante seus ilhos. Ademais, analisando-se os critérios da responsabilidade civil, torna-se impossível precisar que a conduta do(a) genitor(a) foi a omissão especíica a causar danos (extra)patrimoniais na vida de cada ilho abandonado afetivamente. Veriicar-se-á, ainda, que monetizar a falta do afeto entre pais e ilhos é medida demasiadamente arriscada perante um Judiciário que poderá ter que analisar outras relações familiares em que também se pressupõe o afeto como princípio regulador, como, por exemplo, entre pais idosos abandonados por ilhos ou netos ou entre cônjuges ou companheiros, chegando à possibilidade de presenciar demandas em que o objeto se confunde com a necessidade social de ver o afeto monetizado em cada sentença cível que imponha o amor como obrigação civil.

1 Introdução

O presente artigo se propõe a investigar a teoria da perda de uma chance (Perte d’une chance) sob a ótica da possibilidade de aplicação da referida teoria no âmbito das relações familiares, especiicamente na relação paterno-ilial no que se refere à possibilidade de atribuição da responsabilidade civil extracontratual que enseja indenização por abandono afetivo dentro de uma perspectiva lógica, social, ilosóica e jurídica. Trata-se de um tema ainda relativamente novo na doutrina e na jurisprudência pátrias, porém, que vem ganhando aplicabilidade pelos tribunais brasileiros, todavia, com algumas divergências, o que vem a causar a instabilidade jurídica. Entretanto, o presente trabalho apresenta e defende uma vertente na responsabilidade civil: a impossibilidade de reparação civil pela perda de uma chance dentro da perspectiva paterno-ilial relacionada ao abandono afetivo. Em outras palavras, a incoerência de um ressarcimento pecuniário pela perda da oportunidade de conquistar determinada vantagem ou evitar certo prejuízo em razão de um abandono afetivo por um dos pais ou por ambos.

É em virtude da impossibilidade de reparação de um suposto dano afetivo conexo à ideia da chance perdida que se apresenta a aplicação desta teoria na seara do Direito das Famílias com o intuito de produzir uma discussão mais ampla acerca deste estudo. O tema que é referente à reparação patrimonial em razão de

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pressuposição de dano por se abandonar afetivamente alguém se caracteriza aqui pela ausência e a falta de afetividade de um dos pais ou ambos os pais pelo ilho.

A existência do abandono afetivo na relação entre pais e ilhos impõe a discussão acerca da possibilidade ou não da reparação do dano moral causado ao ilho, em razão da atitude omissiva do genitor ou da genitora no cumprimento dos encargos decorrentes do poder familiar em uma perspectiva afetiva e não material.

Uma vez expostas tais considerações preliminares, o presente artigo passa ao estudo sobre o abandono afetivo entre conceito e derivações, a teoria da perda de uma chance (Perte d’une chance) e qual a implicância jurídica e consequências o abandono afetivo provoca em ambos os pólos, ao ilho e ao genitor ou genitora, para que se encontre uma argumentação plausível no que se refere à possibilidade ou não de se conceder reparação pecuniária (indenização) referente a um dano moral decorrente de um abandono afetivo.

2 Histórico da teoria da perda de uma chance

A teoria da perda de uma chance surgiu no Direito Francês, em meados do século XX3, por meio do seguinte acontecimento: um criador de cavalos vencedores estava conduzindo seu cavalo premiado para participar de uma competição; no meio do seu caminho, ocorreu um acidente com o cavalo que o impediu de correr, afastando a sua chance de vencer mais uma competição. O dono do animal pleiteou uma indenização por ter lhe sido tirada a oportunidade de ganhar mais uma corrida. E o dono ganhou a causa.

Essa teoria denominada “perte d’une chance”, também foi adotada, pelos franceses, devido a um erro de diagnóstico, e icou conhecida como a “teoria da perda de uma chance de cura”. Por isso alguns doutrinadores materializam somente como a perda de uma chance de cura, a im de efetivar sua aplicação somente em casos de responsabilidade médica.

Miguel Kfouri Neto apresenta exemplo claro de aplicação da teoria Perte d’une chance:

Na Espanha, um homem teve a mão amputada – e os médicos que o atenderam puseram a mão num recipiente com gelo e encaminharam a vítima ao hospital onde seria realizado o reimplante. Ocorre que o acondicionamento se fez em recipiente com gelo natural, não gelo sintético – e aquela extremidade do membro

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superior chegou ao hospital em avançado estado de congelamento. Por isso, o reimplante foi malsucedido – e os médicos que acondicionaram a mão de forma inadequada condenados a pagar a soma de um milhão e meio de pesetas ao acidentado, pela perda da chance de, ao menos, ver a mão reimplantada.4

Neste mesmo sentido, ainda, a perda de uma chance na esfera da medicina se deu com a ocorrência de mais um fato que resultou em um dano. O exemplo que se expõe é o caso de um médico de Domfront, que foi chamado para realizar um parto às seis horas da manhã, e só compareceu às nove horas. Ao começar a realizar o parto, este veio a encontrar diiculdades ao realizá-lo, pois a criança estava de ombros, por isso teve que ser amputado os braços do bebê. A criança conseguiu sobreviver, entretanto, a sua família icou indignada com a atitude do médico e decidiu demandá-lo para ver ressarcida a “perda” que o bebê sofreu devido ao seu atraso. Foram elaborados dois laudos, um era a favor e outro contra o procedimento que foi adotado pelo médico. Quando foi julgado, o Tribunal de Comfront condenou o médico ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos e, com base nesse julgamento, a jurisprudência francesa passou a aceitar a teoria da perda de uma chance como um dano independente e autônomo, capaz de justiicar uma indenização.

A perda de uma chance se refere à possibilidade de uma pessoa que foi lesada por um terceiro de ser indenizada pela chance que foi perdida, seja a oportuni-dade de conseguir algo, ou de evitar algum prejuízo. Sergio Cavalieri Filho traz o conceito de perda de uma chance como sendo “nos casos em que o ato ilícito tira da vítima a oportunidade de obter uma situação futura melhor, como progredir na carreira artística ou no trabalho, arrumar um novo emprego, deixar de ganhar uma causa por falha do advogado etc.”5

Assim sendo, a “chance” é uma expectativa bastante provável de que se poderia ganhar algo ou não perder algo, porém houve um fato interruptivo do processo em curso, que impediu a sua concretização. Em vista disso quando um juiz for analisar algum fato em que tenha algum vestígio que houve perda de uma chance, ele deve atentar ao dano que foi sofrido, para que a pessoa lesada possa ser indenizada.

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Logo, podemos notar que a perda de uma chance tem uma sustentação no dano real, não meramente presumido, porém, não é possível saber qual seria o resultado se tal ato não fosse praticado por terceiro. Nesse sentido, Miguel Kfouri Neto airma que, na perda de uma chance, se indeniza a oportunidade perdida, não o prejuízo inal, sendo que o dano, nesta teoria, é incerto. “É verossímil que a chance poderia se concretizar; é certo que a vantagem esperada está perdida – e disso resulta um dano indenizável. Noutras palavras: há incerteza no prejuízo e certeza na probabilidade.”6A im de que haja a...

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