A importância histórica de Guadet

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas195-200

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Numa época propriamente de constituição profissional da Arquitetura no Brasil, com a edição da lei instituidora do Conselho de Arquitetura e Urbanismo - CAU/BR em 2010, a instalação e funcionamento da corporação a partir de 2011 e a aprovação do Código de Ética e Disciplina em 2013, parece importante resgatar a origem dessa profissão liberal, sua afirmação como saber especializado e autônomo em face de outros vários agentes da edificação. O arquiteto não se confunde com nenhum outro agente, o que é lição antiga de Julien Guadet, influente arquiteto racionalista francês (no sentido do termo exposto por Viollet-le-Duc), além de professor, perito, inspetor geral de edifícios, etc, que viveu e produziu no final do séc. XIX - embora sua obra principal, Éléments et théorie de l´architecture, em quatro grossos volumes, tenha sido publicada entre 1901 e 1904 e se projetado adiante, no tempo, com sucessivas edições até a II Guerra. O Livro XIV do último volume, com onze capítulos, intitula-se exatamente "La profession d’architecte", iniciando pelos deveres.

Reproduz-se, em seguida, uma tentativa de tradução integral1do chamado Código Guadet, adotado pela Sociedade Central dos Arquitetos Franceses no Congresso Nacional de Bordeaux, onde o documento, redigido por Guadet, foi aprovado por unanimidade. "É a unanimidade perfeita", exclama o presidente do Congresso, o arquiteto Achille Hermant, diante da aclamação do texto pelos presentes. O presidente da Sociedade era Charles Garnier que, na versão do código publicada no tomo IV do livro de Gadet acima indicado, o aprova com um expressivo "visto". Na verdade, o código foi mesmo adotado

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a partir do movimento liderado por Julien-Azaïs Guadet (1843-1908), um "poderoso personagem" (Michel Ragon), chefe de ateliê e professor de teoria na Escola Nacional Superior de Belas-Artes de Paris, formando numerosos profissionais. Exerceu, além disso, ativamente a profissão, colaborando com Charles Garnier, na Ópera, dentre outros trabalhos como a restauração do Théâtre-Français, teatro estatal que é sede da multissecular Comédie-Française (depois do incêndio em 1900), o projeto do Hôtel des Postes (1886) - mas nenhum deles "notável" ressalta Ragon.

Reformulada por decreto datado de 1863, a escola em que lecionava (e que ele considerva "a mais liberal do mundo") passou a expedir diplomas de arquiteto instituídos em novo decreto, de 1867, - e a profissão começava a ganhar então novos contornos no mercado, destacando-se das outras atividades ligadas à construção material (ou seja, afastando-se das artes mecânicas, sobretudo a engenharia)2. Entendeu-se que os arquitetos não poderiam ser considerados como artistas apenas: tinha-se que esclarecer precisamente sua função profissional como se tinha também de determinar uma preparação científica, prévia e suficiente, na academia. Mas isto, como observa Bruno Zevi, deixou o "campo aberto para uma inevitável comparação explícita entre a cultura acadêmica e a realidade" (História de la arquitectura, p. 172), marcada pela industrialização: um conflito parecido com o que vive que a Arquitetura brasileira hoje, depois da lei de 2010 que demarcou pela primeira vez o campo competencial do arquiteto, exigindo e reclamando uma revisão da formação universitária.

Neste sentido, o pressuposto básico é o que a Arquitetura constitui uma arte liberal e não um trabalho manual, distinção que se iniciara por volta do séc. XVI3. Assim, na perspectiva instituinte, o código de deveres dos arquitetos é documento fundamental porque lança as bases de uma nova profissão liberal, estabelecendo as regras deontológicas mínimas para o seu exercício, regras hoje que até hoje se mostram importantes e relevantes. Assim, por exemplo, o arquiteto recebe unicamente honorários como remuneração pelos serviços que presta na composição de projetos e direção de trabalhos (sua atribuição principal); não pode fazer o mesmo tipo de publicidade de seu ofício que os comerciantes normalmente fazem; e não pode encetar trabalhos que prejudiquem terceiros. Cria, ainda, uma solidariedade entre os colegas (ou "confrades") que...

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