Importações paralelas: a implementação do princípio da exaustão de direitos no mercosul, diante do contexto de globalização

AutorElisabeth Kasznar Fekete
Páginas154-187

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1. Considerações introdutórias

Entre1 as diversas situações potencialmente críticas enfrentadas pelos blocos económicos regionais, em seu processo de formação, consolidação e aperfeiçoamento, algumas dizem respeito a direitos de propriedade industrial. Atos como, por exemplo, a usurpação de marcas registradas (a chamada "pirataria") transfronteiras, causam certas dificuldades ao processo de integração, uma vez que os titulares legítimos vêm-se impossibilitados de usar os seus

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próprios sinais distintivos no país-membro em que a apropriação ilícita ocorreu, e, por conseguinte, de comercializar seus produtos com a marca em questão, através de empresa do grupo, de uma licenciada independente ou, ainda, mediante exportação, vendo-se obrigados a adotar uma marca nova ou pouco conhecida, caso resultem infrutíferas as tentativas de recuperação da marca. Outro tipo de obstáculo potencial origina-se das importações de mercadorias que incorporam um direito de propriedade industrial (sobretudo patente, desenho industrial, marca) ou intelectual (direito de autor) do titular local, em detrimento do direito de exclusividade do comerciante intermediário (licenciado, distribuidor etc.) doméstico, configurando as chamadas "importações paralelas", tema do presente ensaio.

Sob o ponto de vista da integração comunitária, a problemática origina-se do fato de que, enquanto o regime de prote-çao aos direitos de propriedade industrial2 confere aos seus titulares direitos de exclusividade de alcance territorial nacional (a proteção abrange somente o território do Estado que concedeu a patente, o registro de desenho ou de marca), atribuindo-lhes a possibilidade de acionar em juízo, nesse país, os terceiros que reproduzam ou copiem a criação imaterial tutelada, a fim de proibi-los de importar, manter em depósito e vender os respectivos produtos, os mercados comuns, segunda etapa da integração económica dos blocos regionais, têm por escopo primordial a eliminação das barreiras à circulação de mercadorias e serviços, bem como à de pessoas e capitais.

Ao mesmo tempo, a tutela jurídica da propriedade industrial deve ser compatibi-lizada, em determinados aspectos, com o princípio da livre concorrência, essencial no direito comunitário.3 Um dos difíceis problemas que surgem, segundo Christo-pher Bellamy e Graham Child, é a existência de uma tensão óbvia entre, de um lado, os sistemas que conferem monopólios legais e, de outro, aqueles cujo objetivo é assegurar a livre concorrência, pois, em matéria de direito nacional, o titular de um direito de propriedade industrial ou intelectual em determinado Estado-membro de um mercado comum pode, em circunstâncias específicas, impedir a importação (paralela) de produtos legitimamente comercializados em outros Estados-membros, mediante o exercício das ações legais correspondentes à infração do direito sob a lei nacional de que se trate, obstruindo, deste modo, a livre circulação de mercadorias através das fronteiras.4

Surgiu, pelas razões expostas, no âmbito da Comunidade (hoje União) Europeia, a necessidade de conciliar os direitos de propriedade industrial e intelectual com os princípios da livre circulação de mercadorias e da livre concorrência.

Neste estudo, examinaremos o estágio em que se encontra o trabalho de regulamentação da complexa temática das importações paralelas no Mercado Comum do Sul-Mercosul, sobretudo diante do "Protocolo de Harmonização de Normas sobre Propriedade Intelectual no Mercosul em Matéria de Marcas, Indicações de Procedência e Denominações de Origem", assinado em 1995, em Assunção, o qual seguiu uma linha evolutiva, ao determinar expressamente a adoção, pelos países-membros, do princípio da exaustão ou esgotamento de direitos. Será interessante mostrar, de um lado, as dificuldades e, de outro, de que forma esse Protocolo contribui para superá-las, ou pelo menos, amenizá-las.

Nosso enfoque será, claramente, de "direito do Mercosul", novo ramo do direito que está nascendo, filiado ao direito internacional, a ocupar um lugar semelhante

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ao que o direito comunitário ocupa na Europa, em palavras do professor Luiz Olavo Baptista.5 O princípio do esgotamento em si e o Direito brasileiro serão objetos de breve análise apenas, pois pretendemos dedicar maior atenção às questões de interesse regional do Mercosul, particularmente no que diz respeito às patentes, aos desenhos industriais e às marcas. Com esse propósito, colocamo-nos desde já duas questões: até que ponto os direitos de exclusividade do titular e do licenciado devem prevalecer sobre a livre circulação de mercadorias e, caso não devam, os limites aos quais deve ser submetido o princípio do esgotamento de direitos. Verificaremos, antes de tentar respondê-las, as diferenças legislativas e jurisprudenciais existentes na matéria entre os países integrantes do Mercosul, e faremos uma incursão na experiência de outros mercados comuns, sobretudo, na da União Europeia, cuja jurisprudência criou o princípio da exaustão de direitos.

Muito pouco mencionaremos as considerações de ordem económica envolvidas no tema, cujo detalhamento ultrapassaria os objetivos deste trabalho.6

2. Noções prévias: conceito, terminologia e âmbito territorial de aplicação do princípio da exaustão

Por razões económicas, políticas e conjunturais diversas, o preço de um mesmo produto pode variar muito de um país para outro, atraindo obviamente a preferência, por parte dos comerciantes, da cotação mais baixa. Ao localizarem preço mais competitivo em determinado país, compre-ende-se que optem por importar dele a mercadoria e, em princípio, nada haveria a recriminar nesse comportamento. Contudo, caso a importação afete os direitos do licenciado ou distribuidor exclusivo no país importador ou os do titular de um direito de propriedade imaterial nesse mesmo mercado, surge a indagação se tal importação caracteriza-se como "paralela" e se a legislação do país destinatário a sanciona cível e/ou criminalmente.

A maioria das Nações não estabeleceu uma definição legal das importações paralelas,7 nem tampouco o fizeram os principais tratados internacionais sobre propriedade industrial e/ou intelectual, como a Convenção da União de Paris, a Convenção de Berna e o Acordo sobre os Aspectos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio, firmado como anexo ao Acordo que estabeleceu a Organização Mundial do Comércio, negociado no âmbito da Rodada Uruguai do GATT (doravante, TRIPs).8 A conceituação, geralmente, é encontrada na doutrina e na jurisprudência.

A Ligue Internationale du Droit de 1a Concurrence9 realizou, em 1992, um amplo estudo intitulado "As Importações Pa-

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rateias e a Proteção de uma Rede de Distribuição".10 Com base nos relatórios nacionais, a Liga concluiu haver um consenso em definir as importações paralelas como sendo "aquelas efetuadas por cidadãos ou sociedades por sua conta ou por conta de terceiros, fora dos circuitos de distribuição exclusiva ou seletiva, num território nacional, de produtos legitimamente comercializados em outro território, seja pelo titular do direito de propriedade intelectual ou outros direitos associados à fabricação, à comercialização e/ou à identificação dos produtos, seja por qualquer outra pessoa com o consentimento ou a autorização do titular". Mais sucintamente, trata-se da "importação de produtos contratuais distribuídos por uma rede 'oficial', comprados em uma outra rede geográfica"11

Observe-se que as mercadorias "paralelamente importadas" apresentam a característica essencial de terem sido produzidas de acordo com uma patente ou desenho devidamente protegidos, ou de portarem marca genuína, não contrafeita, ou ainda, de incorporarem direito autoral de forma lícita, uma vez que foram fabricados seja pelo próprio titular do direito de propriedade industrial ou intelectual, seja por um de seus licenciados, muitas vezes subsidiária do primeiro, e vendidos legalmente; o problema surge por terem sido depois exportados para um país no qual sua venda não foi originalmente autorizada.

A expressão "importação paralela", a mais conhecida no âmbito do Mercosul, foi criada pela jurisprudência europeia. Os países anglo-saxões adotam, ao lado da ex-pressão parallel imports, os termos gray goods ("produtos cinzas") e gray market ("mercado cinza").

Enquanto as importação paralelas são o fato, a exaustão ou esgotamento de direitos é o princípio...

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