A importância da concepção cultural de lei fundamental para o desenvolvimento do saber jurídico constitucional

AutorRafael de Lazari
CargoAdvogado e consultor jurídico Doutorando em Direito Constitucional (PUC/SP) Mestre em Direito (Centro Universitário 'Eurípides Soares da Rocha', de Marília/SP ? UNIVEM
Páginas6-13

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1. Linhas prolegominais

A realidade é facilmente perceptível em muitas instituições de ensino superior de direito do país: ministra-se o direito penal por três ou quatro anos (seis ou oito semestres), leciona-se o direito civil do início ao fim, e os processos penal e civil são estudados por não menos que cinquenta por cento do tempo de duração do curso. Enquanto isso, ao ensino do direito constitucional, resguarda-se o período de um ano (dois semestres) ou o dobro disso, na melhor das hipóteses.

Em termos práticos, enquanto o aluno estuda todos os livros das partes geral e especial do Código Civil, como pessoas, bens, fatos jurídicos, obrigações, família e sucessões, p. ex., deixa de ver temas pertinentes à lei fundamental, que não digam respeito às matérias constitucionais propriamente ditas1 (direitos fundamentais, organização do Estado e organização dos poderes), como hermenêutica constitucional aprofundada, finanças públicas, orçamento, ato das disposições constitucionais transitórias, ordens social, econômica e financeira, nuanças acerca de controle de constitucionalidade etc.

É óbvio que não se pode culpar apenas a “falta de tempo” por esta omissão curricular. Apesar da importância da teoria geral dos direitos fundamentais e de suas espécies, por vezes gasta-se tempo desproporcional com seu estudo, em detrimento de outros temas que também deveriam ser passados ao aluno. Afinal, tão desejável como explicar ao discente as eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais, por exemplo, é demonstrar-lhe como funciona, ainda que em termos teóricos, a formação e o pagamento de um precatório/requisição de pequeno valor.

A consequência deste fenômeno imperfeito é um estudo “manco” do direito constitucional, hipertrofiado quanto às matérias propriamente constitucionais, porém raquítico quanto a outros assuntos. O contexto fica ainda pior se observado que, com isso, o desenvolvimento da consciência constitucional não se procede da maneira que deveria.

Melhor explica-se: é fato que a ciência constitucional – aqui englobando o estudo da Constituição propriamente dita e de comandos normativos que tratam de assuntos constitucionais, como é o caso das leis 9.868/99, 9.882/99 e 12.562/11, que regulam a ADI, a ADC, a ADO, a ADPF, e a ADI interventiva, por exemplo, – talvez seja a que mais tenha se desenvolvido nos últimos vinte e cinco anos (processo iniciado com a redemocratização e com o advento da lei fundamental de 1988), apesar do

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direito como um todo também ter se desenvolvido bastante. Basta ver os primeiros “cursos de direito constitucional”, numa análise visual e fisicamente palpável, lançados em volumes únicos e de espessura mediana, e os estudos atuais, divididos e tematizados em volumes (não raramente mais de um) recheados, com amplo conteúdo jurisprudencial, direito comparado, divergência doutrinária etc.

Também, impensável seria, há alguns anos, exigir-se do operador do direito que começasse fundamentando sua petição/recurso com a Constituição Federal, e não com a lei. A ideia de “império da lei” decorria do entendimento de que as cartas magnas de um país tinham mera força política. Já a Constituição atual, de força jurídica, passou de mera “carta de intenções” para vinculadora das iniciativas pública e privada2.

Pior ainda seria admitir que um juiz, um dia, pudesse decidir com base em um princípio não legislado (à época, sequer norma era um princípio3).

Nessa frequência, é nítido o paradoxo: o direito constitucional como ciência autônoma se desenvolveu, mas não sua grade de ensino. Com isso, docentes, quando realmente interessados na transferência de conhecimento, se desdobram para vencer o máximo de conteúdo no pouco tempo que lhes é fornecido (não raras vezes aulas-extras são marcadas para cumprir o conteúdo). Nas matérias (assuntos) em que o aluno não é, ao menos, “iniciado”, resta-lhe a aprendizagem autodidata, ou o prosseguimento dos estudos numa pós-graduação em sentido amplo ou em sentido estrito. Como essa não é a regra para um bom número de alunos – por absoluta falta de tempo, interesse ou dinheiro –, o resultado é o pouco conhecimento prático do que represente uma jurisdição constitucional, ou o controle preventivo de constitucionalidade das leis e atos normativos, ou de como um bom entendimento de princípios pode servir para vencer uma demanda que, numa análise fria e estrita da lei, é dada como perdida.

Sem mais delongas, este trabalho se debruça sobre a concepção cultural de constituição, desenvol-vida por Peter Häberle, e sua importância para a difusão do saber constitucional. Mais que entender a constituição como uma conjuntura de fatores normativos, sociológicos, políticos e jurídicos, defende o catedrático de Bayreuth, Alemanha, o germinar de uma consciência constitucional coletiva, que abranja tanto os operadores como os não operadores do direito, como passo fundamental à formação de uma “sociedade aberta” de intérpretes.

Para isso, no tópico seguinte trataremos sobre as diversas concepções de constituição existentes – dando ênfase, obviamente, à cultural de Häberle –, para, em seguida, poder apresentar propostas que visem à readequação do ensino da ciência constitucional aos novos tempos do Estado Constitucional Cooperativo4.

2. As concepções de constituição, com ênfase em Peter Häberle

São várias as “concepções de constituição”, interpretações à lei fundamental consonantes à época e à ocasião em que foram elaboradas. Aqui, trabalharemos na ordem em que se deram, com a sociológica, com a política, com a jurídica, com a normativa e com a cultural5.

Ferdinand Lassalle é o grande expoente da visão sociológica de constituição, pronunciada em 1863, para intelectuais e operários da antiga Prússia6. Segundo o au-tor, os problemas constitucionais não são problemas jurídicos, mas sim ligados ao poder. Por isso, existiria uma constituição escrita ou jurídica (como conhecemos) e, ao lado dessa, uma constituição real ou efetiva (que representa a soma dos “fatores reais de poder” que regem uma determinada nação). Nesse prumo, sendo uma concepção sociológica, esta constituição efetiva, segundo Lassalle, sempre há de prevalecer sobre a primeira. Se a constituição escrita não corresponde com a realidade, ela não passa de “uma folha de papel”7.

Por sua vez, Carl Schmitt é o grande entusiasta da concepção política8. Com efeito, o autor alemão defende a existência de uma constituição propriamente dita (apenas aquilo que decorre de uma “decisão política fundamental” que a antecede) e, em segundo plano, de leis constitucionais9. As duas são formalmente iguais, mas materialmente distintas. Na primeira, nem tudo o que se encontra na constituição é fundamental; o que, apesar de estar na constituição, não for fundamental, serão apenas leis constitucionais10.

Dando prosseguimento, Hans Kelsen é o grande defensor da concepção jurídica11, segundo a qual a constituição não precisa buscar seu fundamento nem na sociologia nem na política. Para o autor, o fundamento de uma constituição é estritamente jurídico12. Tratase, veja-se, de uma contraposição diametral ao modo de visão de Lassalle, porque, enquanto naquele primeiro ponto de vista deveria prevalecer a realidade quando esta se confrontasse com a norma, neste, é a norma que deve imperar ainda que seu poder legitimador já não possua o mesmo raciocínio da época da elaboração da lei fundamental.

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No que atine à visão normativa de constituição (tese mais arraigada na atualidade do direito constitucional), Konrad Hesse, seu grande expoente13, reconhece que, de fato, em certos casos, a constituição jurídica acaba sucumbindo diante da realidade. No entanto, muitas vezes, a constituição escrita possui uma força normativa capaz de modificar esta realidade14; para isso basta que exista “vontade de constituição” (Wille zur Verfas-sung) e não apenas “vontade de poder” no sentido de força (Wille zur Macht).

Esta tese é bastante aceita por intermediar o sociologismo de Las-salle ao juridicismo de Kelsen15.

Por fim, criada por Peter Häberle, a concepção cultural16 entende que a constituição, em verdade, tem um aspecto sociológico, político e jurídico, remetendo a um conceito de constituição total (isto é, em todos os aspectos)17. Ao mesmo tempo em que uma constituição é resultante da cultura de um povo, ela também é condicionante dessa mesma cultura com seu surgimento, contribuindo para formação de novos valores18.

Tal ângulo de observação parte da premissa de que o direito é um objeto cultural e, como tal, produto da atividade humana19. Ora, se a cultura é algo feito por humanos, para ser consumido por outros humanos, significa que uma concepção cultural de direito implica algo que é concebido por humanos para autorregulação. O homem cria as regras que vai seguir, e não pode simplesmente modificá-las quando delas não mais precisar, pois, antes disso, deve se certificar de que um número considerável de congêneres também preza pela modificação.

Esta visão é facilmente percebida no direito constitucional. Tanto os países que possuem poucas ou uma lei fundamental em seu histórico (como os Estados Unidos, p. ex., cuja única e atual constituição data de 1787), como os que possuem várias (como é o caso do Brasil,
p. ex., com cartas de 1824, 1891, 1934, 1946, 1937, 1967 e 1988), encontram uma visão cultural para isso: aqueles que possuem uma curta história de cartas magnas alegam ou que seu poder constituinte originário deve ser respeitado20 ou que compete ao intérprete manter uma constituição atemporal21; já os países que possuem diversas magnas cartas em seu histórico alegam que é preciso moldar a constituição a cada geração, ainda que, para isso, constituições precisem...

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