O impacto da informatização judicialsobre os princípios do processo civil

AutorBruno da Costa Aronne
CargoMestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
Páginas77-97

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1. Introdução

Não é de hoje o grave problema da ineficiência da Justiça. Em 1895, o austríaco Franz Klein já propugnava a diminuição dos formalismos processuais, bem como as idéias da economicidade, da celeridade e do acesso dos mais pobres à Justiça, com o nobre intuito de melhorar a prestação jurisdicional. Aliás, essas propostas foram incorporadas ao Código Processual Austríaco (ZPC - Zivilprozessordnung) daquele mesmo ano e muitos países, depois, copiaram seus dispositivos. Já nos anos setenta1, Mauro Cappelletti liderou um significativo movimento para diagnosticar as causas da ineficiência da Justiça2. O conjunto desse trabalho é conhecido como Projeto Florença e os principais resultados foram expostos na obra Acesso à Justiça3. Nesse livro, constata-se a preocupação dos autores com o problema do acesso dos indivíduos mais pobres ao Poder Judiciário, à respectiva representatividade, por meio de advogados públicos ou privados, bem como a uma decisão justa e efetiva. Verifica-se, também, o incentivo à adoção de políticas públicas e judiciárias voltadas para a tutela dos direitos difusos e coletivos, assim como o estímulo à solução alternativa de conflitos e à reestruturação (através da especialização das varas e funções) ou criação de novos tribunais (juizados de pequenas causas, por exemplo).

A Justiça brasileira também sofre, há bastante tempo, com o problema da ineficiência, especialmente na questão do acesso à justiça, tanto no que diz respeito à representatividade e aos custos, como no que tange ao tempo de duração do processo.

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Assim é que, no Brasil, podemos elencar, como exemplo da influência do Projeto Florença4, na busca de maior amparo aos direitos materiais e de maior efetividade aos direitos processuais, a edição das Leis nº 7.347/85 (Ação Civil Pública), nº 9.099/95 (Juizados Especiais Estaduais), nº 10.259/01 (Juizados Especiais Federais) e nº 9.307/96 (Arbitragem).

Como é cediço, apesar de úteis em vários aspectos, tais reformas não operaram os resultados esperados e o aparelho judiciário brasileiro permaneceu acometido pelos antigos e por novos defeitos. Nos últimos anos, com os fins de eliminar os entraves burocráticos5 do seu respectivo código e de conferir uma prestação jurisdicional mais célere e efetiva, o processo civil pátrio sofreu verdadeira onda renovatória legislativa. Entre as reformas mais recentes, destacam-se aquelas oriundas da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, e do Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais rápido e republicano, como as Leis nº 11.232/05 (Cumprimento de sentença), nº 11.382/06 (Execução de título extrajudicial), nº 11.417/06 (Súmula Vinculante), nº 11.418/06 (Repercussão geral no recurso extraordinário), nº 11.341/06 (Demonstração da divergência no recurso especial), nº 11.419/06 (Informatização do processo judicial), nº 11.441/07 (Inventário, partilha, separação consensual e divórcio por via administrativa) e nº 11.448/07 (Legitimidade da Defensoria Pública para a ação civil pública).

A mencionada Lei nº 11.419/06, que trata da informatização do processo judicial, entrou em vigor no dia 20 de março de 2007, alterando alguns artigos do Código de Processo Civil e regulamentando, de maneira geral, o processo eletrônico. Esse novo diploma abarca 22 artigos e já provoca muita polêmica no meio jurídico, o que não é nenhuma surpresa. Afinal, essa lei estabelece uma considerável mudança de paradigmas aos operadores do processo judicial, na medida em que regulamenta o uso da assinatura digital nos Tribunais, os prazos até meia-noite, a intimação e a citação por meio eletrônico, o Diário de Justiça eletrônico, entre outros assuntos novos e instigantes.

A proposta legislativa de informatização do processo judicial colimava aprimorar a eficácia dos procedimentos judiciais, “principalmente no que diz respeito à sua celeridade e à economia, que beneficiará tanto o Poder Público, que arca com o funcionamento daPage 79máquina judiciária, quanto à parte, no que diz respeito aos custos processuais”6. Portanto, o que se percebe com clareza é o intuito de amenizar o problema da ineficiência da Justiça, elevando a qualidade e acelerando a prestação jurisdicional7, tornando-a, simultaneamente, menos dispendiosa às partes, aos operadores do Direito e ao próprio Estado.

Esses resultados podem ser alcançados? Sim, podem, mas é preciso cautela8, a uma, porque se trata de novidade que transformará o meio de tramitação do processo e, por isso, a transição deverá ser feita a passos curtos; e, a duas, porque alguns princípios processuais sofrerão reflexo direto da nova sistemática, o que reclama a investigação desse impacto tecnológico, para evitar um retrocesso na constante busca pelo processo justo.

2. Os princípios processuais

Princípio9 é um ponto de partida. Os valores jurídicos, tais como a Justiça, a dignidade da pessoa humana e a eqüidade, por exemplo, são idéias abstratas, supraconstitucionais, que informam e permeiam todo o ordenamento jurídico, mas não se traduzem em linguagem normativa. A seu turno, os princípios representam o primeiro estágio de concretização dos valores jurídicos a que se vinculam. Como afirma Ricardo Lobo Torres,

“os princípios, sendo enunciados genéricos que quase sempre se expressam em linguagem constitucional ou legal, estão a meio passo Page 80 entre os valores e as normas na escala de concretização do direito e com eles não se confundem.” 10

Há renomados autores11 que classificam os princípios e as regras como espécies do gênero norma, sendo que a diferença reside no âmbito de aplicação de cada um: a regra se aplica a aspectos pontuais e os princípios, a situações mais elásticas. Citando Robert Alexy, Luiz Guilherme Marinoni12 ressalta que um mesmo princípio pode valer para um caso e não valer para outro, o que não significa que, nesta hipótese, tenha perdido sua vigência. Além disso, em determinadas circunstâncias, dois princípios podem entrar em choque, o que opera a aplicação do princípio da proporcionalidade, para definir aquele que vai se soprepor no caso concreto. De qualquer forma, o princípio não aplicado também não perde suas força e vigência.

No Brasil, os princípios possuem uma função normativa plena, por força do disposto no § 1º do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Desse modo, a falta de norma infraconstitucional que regulamente o gozo ou exercício de direitos ou garantias fundamentais não pode servir de pretexto para a sua denegação13.

Existem princípios gerais no ordenamento jurídico brasileiro, mas também existem princípios específicos para cada ramo da ciência jurídica. O direito processual civil dispõe de um rol extenso de princípios, alguns com aplicação restrita e outros com desdobramento até em outras áreas.

No que respeita aos princípios processuais, Luiz Fux salienta que

“Os princípios fundamentais do processo, assim como os das demais ciências, caracterizam o sistema legal adotado por um determinado Page 81 país, revelando-lhe a linha juspolítica e filosófica. Esses princípios são extraídos das regras processuais como um todo e seus cânones influenciam na solução de inúmeras questões legisladas ou não, quer na exegese emprestada a determinado dispositivo, quer na supressão de uma lacuna legal. (...) Entre nós, os princípios do processo, como, v.g., o da igualdade das partes, o do contraditório, o do devido processo legal, seguem o espírito democrático que norteia a nossa lei maior e são diretrizes para a interpretação das normas processuais.” 14

Nessa mesma linha, Candido Rangel Dinamarco15 sublinha que o zelo aos princípios evita a interpretação jurídica cega, no labirinto de normas e atos processuais. Assim, os princípios funcionam como um porto seguro, não somente de partida, mas também de instrumento de esclarecimento, especialmente para se traçar o rumo da aplicação normativa a uma determinada situação concreta, seja ela regulamentada, ou não, por uma regra específica.

Esses princípios também são considerados como garantias processuais, as quais devem ser respeitadas e tuteladas, com o fim de se disponibilizar um processo justo às partes e aos operadores do Direito, na atividade jurisdicional. Leonardo Greco16desenvolveu um estudo em que essas garantias estão divididas em individuais17 e estruturais18, sendo que grande parte delas corresponde justamente a princípios constitucionais processuais, que informam o ideal do processo justo19. Por conseguinte, aPage 82violação a esses princípios consiste em grave retrocesso na linha evolutiva do processo civil contemporâneo.

Importa destacar que, muitas vezes, são as próprias reformas processuais que violam os princípios. Como é cediço, reformas legislativas costumam tentar resolver um problema pontual (e até resolvem), mas, pela falta de investigação prévia de seus efeitos, criam uma outra barreira à efetividade processual e, em algumas circunstâncias, acabam por violar princípios processuais. Nesse contexto, José Carlos Barbosa Moreira20 propõe que as reformas da lei processual sejam precedidas do diagnóstico dos males que se quer combater e das causas que o geram ou alimentam, para evitar que as incessantes reformas, ainda que resolvam um problema aqui, criem outro acolá.

A Lei nº 11.419/06 procurou otimizar a tramitação do processo, prometendo a diminuição da burocracia cartorária e do tempo de duração da ação; a...

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