A Igualdade Racial no Estado Democrático de Direito

AutorEder Bomfim Rodrigues
Páginas25-44

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As discussões em torno das desigualdades entre brancos e negros no Brasil adquiriram um grande destaque a partir de 1988 com o Centenário da Lei Áurea, em 1995 com os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares e com as conferências preparatórias1à III Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e Formas Correlatas de Into-lerância das Nações Unidas, em 2001, na cidade de Durban, África do Sul. Diante disso, surgiram vários projetos de lei no Congresso Nacional com o objetivo de proporcionar a inclusão dos negros e reduzir as desigualdades raciais no País. Entre eles, pode-se destacar o Estatuto da Igualdade Racial, Projeto de Lei do Senado 213/2003 (Projeto de Lei 6.264/2005, na Câmara dos Deputados).

Mas, tais discussões e reivindicações por igualdade entre bran-cos e negros não são novidades no cenário nacional que surgiram tão somente a partir do final do século XX. A luta dos negros pela cidadania vem desde o período colonial, com as fugas e a formação dos quilombos em todo o território nacional.

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"Na Bahia, em fins do século 18, houve registro de escravos que abandonaram a plantação e só admitiram regressar ao trabalho quando fossem atendidas suas reivindicações - eles exigiam que voltasse a ser concedido um benefício informal dado pelo senhor: dispor de dois dias livres na semana, nos quais poderiam cuidar do próprio sustento (pescar, cortar lenha e plantar arroz, por exemplo). Era uma espécie de greve, que teve de contar inclusive com a mediação de um jesuíta. Os escravos alcançaram seus objetivos."2Mesmo após a liberdade em 1888, a luta dos negros prosseguiu. E foi assim com a criação da Frente Negra Brasileira (FNB) em 1931, em São Paulo, que atuava na assistência aos negros mais pobres, o Teatro Experimental Negro (TEN) em 1946 "que alçaria Abdias do Nascimento à condição de figura-símbolo do protesto negro no Brasil"3, e o Movimento Negro Unificado (MNU) que surgiu em 1979, tendo como bandeira o combate ao mito da democracia racial e à opressão racial sofrida pelos negros no Brasil. Mas, diversas outras reivindicações também se fizeram presentes, entre as quais se podem citar aquelas da intelectualidade negra, como registra Carvalho:

O jornal Quilombo, por exemplo, colocava, desde o seu primeiro número de 1948, uma série de cinco propostas, na coluna chamada Nosso Programa, a terceira das quais dizia o seguinte:

"Lutar para que, enquanto não for gratuito o ensino de todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares."

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Vemos aqui que Abdias do Nascimento propunha um programa similar ao que mantêm atualmente algumas ONG’s dedicadas aos pré-vestibulares para negros com algumas universidades vocacionais: um programa de bolsas de apoio aos estudantes negros que ingressarem na universidade.4Perante uma realidade que, lamentavelmente, ainda hoje, é marcada pelas desigualdades, injustiças, violência, opressão e miséria dos negros no Brasil, o que fazer para incluir minorias historicamente excluídas e discriminadas? Como promover a igualdade e a inclusão democrática de minorias que sempre estiveram à margem dos processos discursivos na sociedade brasileira? Como possibilitar o exercício da autonomia e da emancipação de cidadãos diante do mito da democracia racial que vem impedindo a realização da igualdade e da efetiva inclusão de milhões de brasileiros ao longo de décadas?

Buscando responder a estes e tantos outros questionamentos é que foi aprovado, no Congresso Nacional, o Estatuto da Igualdade Racial, como forma de proporcionar inclusão e possibilitar a efetivação da igualdade e de uma democracia participativa, trazendo, inclusive, a possibilidade do uso das ações afirmativas.

1 A igualdade nos Estados Unidos

A igualdade entre brancos e negros sempre foi um tema importante na história dos Estados Unidos. Uma questão que não foi resolvida no processo de Independência e nem com a Constituição de 1787, até porque a escravidão negra era uma realidade presente na sociedade americana.

A existência de um sistema escravista e a falta de previsão na Constituição do princípio da igualdade impediram que os negros norte-americanos fossem considerados como pessoas, o que pode ser percebido numa "lei da Virgínia (1705), ainda no período colonial, [que]

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reconhecia que os escravos eram bens imóveis, vinculados à terra, noção que terminou sendo reproduzida, igualmente, em diplomas legais do Kentucky (1798) e do território de Louisiana (1806)"5. Nesse sentido é que a Suprema Corte entendeu, no julgamento do caso Scott v. Sandford 60 U.S. 393 (1856), que Dred Scott não era pessoa e assim não teria direito de petição frente a um tribunal, pois era considerado como um objeto, e, logo, não era um cidadão.

"Pode um negro que teve seus antepassados importados e vendidos como escravos neste país tornar-se um membro da comunidade política fundada e organizada pela Constituição dos Estados Unidos e, como tal, tornar-se titular de todos os direitos, privilégios e imunidades garantidos por esse instrumento aos cidadãos, entre os quais o de acionar o Judiciário dos Estados Unidos nos casos especificados na Constituição?"6

O Chief Justice Roger Taney, relator do caso, respondeu a esse questionamento negando a cidadania aos negros nos Estados Unidos. O voto de Taney foi seguido por quase todos os juízes da Suprema Corte, sendo inclusive a opinião final da Corte no julgamento. Através desta polêmica decisão, a Suprema Corte reconheceu que somente aqueles considerados e reconhecidos como cidadãos na Declaração de Independência e na Constituição de 1787 eram realmente cidadãos. Os negros estavam fora porque não foram levados para as antigas Treze Colônias inglesas para viverem em liberdade.

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A partir de tal decisão as divergências entre abolicionistas e escravistas só aumentaram, levando inclusive à Guerra de Secessão (1861-1865), uma das mais sangrentas da contemporaneidade.

A vitória dos Estados do Norte na Guerra Civil não proporcionou uma mudança tão radical na situação dos negros nos Estados Unidos. Mesmo diante de uma igualdade garantida constitucionalmente, através da Décima Quarta Emenda em 1868, a perseguição e a discriminação não acabaram, continuando presentes até meados do século XX.

O julgamento do caso Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896) veio possibilitar que essas injustiças fossem uma constante e, inclusive, legitimadas, pelo Judiciário. Nas palavras do Justice Brown, relator do caso e a opinião final da Corte:

"leis permitindo ou mesmo requerendo a separação em locais onde eles estão propensos a serem levados em contato, não, necessariamente, implicam a inferioridade de uma raça para a outra, e têm sido geralmente, se não universalmente, reconhecidas como dentro da competência das legislaturas estaduais no exercício de seu poder de polícia."7

Plessy foi responsável por difundir a doutrina "separados mas iguais" e permitir a existência da segregação racial nos Estados Unidos por mais de meio século. Outros julgados da Suprema Corte confirmaram a decisão em Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896). Assim foi com os casos Cumming v. Board of Education of Richmond County, 175 U.S. 528 (1899) e Berea College v. Kentucky, 211 U.S. 45 (1908), nos quais a Suprema Corte adotou uma posição refratária a uma real igual-dade entre brancos e negros, pois garantiu e validou a existência da segregação racial no país.

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"A discriminação contra o negro não podia ter um efeito tão grande sem a tolerância da ordem jurídica. Foi necessária a anuência dos tribunais para que a condição subordinada do negro se tornasse um assunto de importância extralegal."8

No julgamento do caso Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954), a Suprema Corte pôs fim à segregação racial e à doutrina "separados mas iguais". O voto do Chief Justice Warren, a opinião final da Corte sobre o caso, foi orientado pelo entendimento de que a existência da segregação entre brancos e negros nas escolas públicas, mesmo que estas sejam iguais, vem excluir os negros da igualdade da Décima Quarta Emenda.

"A segregação de crianças brancas e negras nas escolas públicas tem um efeito prejudicial sobre as crianças negras. O impacto é maior quando há autorização legal para tal política de separação de raças, sendo normalmente interpretada como uma indicação da inferioridade dos negros. O senso de inferioridade afeta a motivação de uma criança para aprender. A segregação autorizada por lei, portanto, tem a predisposição de retardar o desenvolvimento mental e educacional das crianças negras e privá-las de alguns benefícios que elas poderiam receber num sistema educacional racialmente integrado." 9

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Dessa forma, a Suprema Corte chegou à conclusão de que é inconstitucional qualquer lei que venha segregar e excluir os negros do acesso às iguais oportunidades educacionais, e que a doutrina "separados mas iguais" não tem mais validade nos Estados Unidos.

Contudo, mesmo com o fim das práticas segregatórias, a exclusão dos negros continuou sendo um fato, pois a realidade norte-americana não mudou de repente. Segundo Dworkin:

"a história da campanha contra a injustiça racial desde 1954, quando o Supremo Tribunal decidiu Brown contra Conselho de Educação, é, em grande parte, uma história de fracassos. Não conseguimos reformar a consciência racial de nossa sociedade por meios racialmente neutros."10Sendo assim, qual a saída adotada para resolver tal impasse? Como a inclusão dos negros foi alcançada nos Estados Unidos? A resposta a tais questionamentos se deu através das ações afirmativas. A primeira manifestação de ações afirmativas aconteceu no governo do Presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) com a Executive Order 8.806 de 25 de junho de 1941. Mas foi nos governos dos Presidentes...

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