Igualdade e não discriminação no ambiente de trabalho: uma questão constitucional de inclusão (e de proteção) do trabalhador portador de VIH/SIDA

AutorCamila Rodrigues Neves de Almeida Lima
CargoMestranda em Ciências Jurídico-laborais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC)
Páginas29-48

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1. Introdução

A pandemia da SIDA é um fenômeno patológico de desdobramentos complexos, com impacto mundial e consequências sociais, econômicas, políticas e culturais, que atingiram enormes proporções, destacando-se iniciativas internacionais e nacionais, governamentais e não governamentais de estudo, combate, controle, tratamento e prevenção, muitas formalizadas em convenções e protocolos acordados entre Estados. Ao tempo em que socialmente se disseminava a estranheza alarmante perante a acelerada contaminação, criminalização de determinados segmentos sociais e discriminação dos contaminados, afetando, sobremodo, o convívio social e os espaços de trabalho, as pessoas atingidas pela doença, além de vivenciarem o temor em face de uma enfermidade com enorme carga de incerteza, também passaram a enfrentar constantes violações de seus direitos de cidadão e de trabalhador, desa?ando um conjunto de ordenamentos jurídicos nacionais e demandando novas formas legais de proteção.

Este trabalho trata primordialmente dessa questão no contexto e na produção jurídico--legal, analisando perspectivas e mudanças na forma como direitos e garantias vêm sendo (ou não) protegidos e efetivados no ambiente de trabalho. Entendemos que o cenário complexo que se formou a partir da manifestação da SIDA, movido ainda por outras intensas mudanças na estrutura produtiva e da organização social, decorrentes da crise do capitalismo, dinamicamente modi?ca e/ou provoca situações e cria novos processos, emanando a necessidade de o ordenamento político-jurídico acompanhar esse movimento social, de modo a manter sob a égide do arcabouço jurídico a tutela de bens fundamentais (direitos, garantias e liberdades).

Estruturamos as nossas re?exões reportando analiticamente ao direito à igualdade e à não discriminação sob o viés de seu processo de constitucionalização brasileira, para, então, adensarmos a discussão referente aos direitos inerentes à personalidade do trabalhador sob a perspectivada da garantia de acesso e de

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segurança no emprego, dimensionando problematizações doutrinárias e desdobramentos provenientes dessa demanda.

Entre as diversas formas de desigualdade presentes nas dimensões sociais, consideramos aquelas relativas à classe social, ao gênero, à raça, à idade, à crença religiosa e à orientação sexual (enfatizamos particularmente as categorias suspeitas), delimitando nosso enfoque na perspectiva do soropositivo assintomático (VIH) e do portador da SIDA, evidenciando eventuais práticas discriminatórias, coibidas pela normatividade.

Em que pese a discussão acerca dos direitos da personalidade do trabalhador, destacamos a baliza constitucional que impõe a necessidade de respeito e de proteção à sua privacidade e integridades física, moral e intelectual, bem como o controle normativo a condutas discriminatórias.

Com base nessa temática, passaremos a analisar o case study do trabalhador portador de VIH/SIDA, sob a perspectiva do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Português (caso do cozinheiro de hotel), do acórdão do Tribunal Distrital de Columbia (caso do candidato a bombeiro), do acórdão da Corte Europeia de Direitos Humanos (caso do joalheiro grego) e do acórdão do Tribunal Canadense dos Direitos Humanos (caso do cozinheiro canadense), abordando práticas violadoras pelo empregador a princípios constitucionais.

Pretendemos, com o presente estudo, contribuir com questionamentos sobre o atual sistema normativo constitucional e juslaboral, ponderando algumas saídas presumidamente capazes de amparar e proteger o trabalhador perante atos arbitrários e discriminatórios, procurando reter dessa discussão a garantia constitucional de acesso e de segurança no emprego.

2. Elementos dos direitos à igualdade e à não discriminação: questões a debater
2.1. Ponderações a respeito do preceito isonômico

O preceito isonômico1 é atualmente impresso como paradigma basilar pelo universo jurídico ocidental, positivado enquanto princípio fundamental constitucionalmente salvaguardado, fomentando noções de igual-dade entre seus pares e de rechaço a tratamento diferenciado, com base em favoritismo, diferenciações e isolamentos; no entanto, enquanto trabalho investigativo, mister se faz tecer traços da gênese de sua construção jurídica.

O processo de estruturação no campus jurídico2 remete às in?uências iluministas impressas nas revoluções liberais do século XVIII, que propiciaram o processo de constitucionalização francês, americano3 e inglês,

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abordando a igualdade sob a perspectiva formalística, vindo a ser positivada sob o viés da materialidade apenas com os contributos do constitucionalismo alemão, nomeadamente com a Constituição de Weimar, de 1919, que principia o Estado Social de Direito, consubstanciando a formação4 do modelo constitucional moderno5.

Subscrevendo essa construção da noção jurídica da igualdade, apontada pela história como a tomada e a retomada de um determinado preceito que comporta certa carga de mutabilidade em sua percepção e abordagem jurídica, em acordo com a evolução social, denota-se que essa construção “varia tanto no que diz respeito ao uso da força para limitar a expansão da igualdade como também para reforçar a legitimidade das demandas contra a ordem, para sua conservação, ou para sua reforma ou revolução”6.

A referida construção e a?rmação da isonomia entre os homens são legitimadas7, enquanto preceito universalizado, pela cultivação de uma consciência de igualdade, valorada em torno da constatação das relações díspares fomentadas pela cultura capitalista, vocacionada como “referencial da socialização de direitos”, e, portanto, compreendida como uma “instituição democrática e revolucionária”8 no arcabouço constitucional.

Como parâmetro constitucional brasileiro, a isonomia vem sendo gradualmente abordada por suas Cartas Políticas. A atual Constituição da República Federativa do Brasil (CRB), de 1988, preconiza a igualdade em seu art. 5º e no preâmbulo constitucional, informando-a como princípio fundante deste Estado Demo-crático de Direito, ao passo em que lhe confere status de direito fundamental com roupagem de garantia constitucional.

No âmbito da OIT/ILO, a Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho9, de 18 de junho de 199810, aborda a

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“igualdade no trabalho”, preconizando, entre outros preceitos, o da “eliminação da discriminação no emprego”.

Partindo dessa premissa fundante, evidenciamos a atribuição de uma tríplice conotação à igualdade, ?ncada nas acepções de regra, princípio e postulado, sistematizada no ordenamento jurídico enquanto direito e garantia constitucionais. No entanto, reconhece Humberto Ávila11 a ausência de materialidade desse preceito, que por si só não identi?ca o objeto jurídico a ser tutelado, pelo que necessita de um direcionamento que contorne os seus efeitos práticos, dependendo, destarte, da proatividade dos critérios diferenciadores e da ?nalidade pretendida (mensurada mediante o exame da adequação dos meios), comumente identi?cados em grupos sociais intitulados de categorias suspeitas.

Seguindo essa tendência de reconhecimento de nuanças da garantia principiológica à igualdade, Dulce Lopes12 constata a emanação de um tríplice mandamento, conferindo o “conceito plurissigni?cativo de igualdade, que, numa teorização genericamente aceita, tem vindo a ser desdobrado em três dimensões distintas – a proibição do arbítrio, a obrigação de diferenciação e a proibição de discriminação”, acentuando o instituto da discriminação positiva13.

Contextualizando a aplicabilidade da igualdade nos espaços de trabalho e o enfrentamento jurídico às práticas discriminatórias direcionadas a trabalhadores portadores de VIH/SIDA, objeto de nossa análise, impera a necessidade de interpelação da igualdade combinada com a dignidade da pessoa humana14, vocacionada como fórmula canalizadora da proteção e da efetivação dos direitos relativos à personalidade15, consubstanciando, pois, a tendência constitucional no tratamento preventivo de ações discriminatórias16, temática a ser abordada adiante.

Nesses termos, buscamos explorar, depois de breve historicidade jurídica da isonomia que prospera até a atual concepção do preceito constitucional de igualdade, que este indicativo postula sua legitimação preceituando a abstenção a práticas discriminatórias e arbitrárias fundadas em critérios suspeitos, buscando imprimir densidade explicativa a esse ordenamento.

2.2. Considerações a respeito da não discriminação

Depois de apriorística veri?cação da igualdade enquanto garantia constitucional, trazemos à baila o preceito da não discriminação, consubstanciado em uma inclinação negativa e

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antípoda17 da isonomia (e por ela impulsionado), apto para fomentar e corpori?car o signi?cado desta, que se apresenta enquanto dispositivo neutro e isento18 de um concreto direcionamento prático19.

Fazemos aqui um adendo às nossas colocações para contraditar eventuais e equivocadas percepções, uma vez que não intentamos difundir a pretensa noção de indiferença ou de banalização do...

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