Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da isonomia

AutorWalter Claudius Rothenburg
Páginas78-92

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1 A igualdade não é dada, ela é construída

A questão sobre se a igualdade é natural, se os seres humanos apresentam uma mesma natureza e partem de condições originalmente (idealmente) equivalentes é uma questão filosófica e altamente polêmica.1 Presumo que a igualdade não seja encontrada espontaneamente na sociedade, a despeito da natureza comum (biológica e moral, física e espiritual) de todo ser humano. As pessoas são diferentes "em sua personalidade e em sua ambição, diferentes em sua condição cultural e em sua capacidade de produção econômica" - para ficar com os aspectos apontados por Czajkowski (2002, p. 190). Portanto, igualdade é algo que precisa ser obtido a partir de reivindicações e conquistas e, para tanto, o Direito pode servir de valiosa ferramenta. No dizer de Frischeisen (2000, p. 58), "as condições de igualdade precisam ser produzidas... [por meio de] ações que o Poder Público realiza, visando o efetivo exercício da igualdade, base de toda a ordem social".

Também as diferenças são, em certo sentido, elaboradas. Para Suiama (2004, p. 132), "a identidade de cada um não é um dado, mas sim algo construído a partir das relações que se estabelecem nas sociedades humanas". Isso revela que, afinal, igualdades e diferenças não são tão distintas assim.

O Direito tem a função de oferecer um tratamento equivalente que assegure a igualdade e de oferecer um tratamento diferenciado que promova a igualdade, mas, paradoxalmente, como instância social de regulação, presta-se com freqüência a manter situações de privilégio e opressão (Sunstein, 2009, p. 174-175). Esta função desvirtuada de garantia (injusta) deve ser revelada e superada; aquela função de transformação (justa) deve ser alcançada. Portanto, são importantes as interferências jurídicas (em grande medida, estatais), ainda que contramajoritárias (quer dizer, contra a episódica vontade da maioria ou dos detentores do poder político-social), para eliminar desigualdades e proporcionar igualdade. Afirma Streck (2001, p. 283):

Esse novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma ordem de convivência assentada em conteúdos materiais de vida e em um projeto de superação da realidade alcançável com a integração das novas necessidades e a resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação constitucionais.

A quem presta serviço à igualdade? A menção aos beneficiários da igualdade - inclusive daquela que impõe tratamentos diferenciados - não estaria completa se não abarcasse, além dos Page 79 particularmente beneficiados, todos nós, que temos direito de conviver com nossos semelhantes/ diferentes e partilhar das experiências da diversidade, em espírito democrático (participativo) e solidário. A exclusão a todos prejudica: "As vítimas desses processos de dominação não são apenas aqueles que são alvo do preconceito. À maioria que mais ou menos segue o padrão vigente restam o empobrecimento da experiência, a massificação e a intolerância." (Suiama, 2004, p. 138). A distribuição desigual de bens na sociedade provoca, por outro lado, vantagens exageradas, injustificadas, aquinhoando - eventualmente sem "culpa" - sujeitos que são beneficiados por causa da desigualdade (inferioridade, exploração, opressão) de outros. Sunstein (2007, p. 177) resgata a idéia de Madison sobre como "combater o 'mal das partes'": "Por meio da retenção de oportunidades desnecessárias de uns poucos, para aumentar a desigualdade da propriedade, por intermédio de uma imoderada, e especialmente desmerecida, acumulação de riquezas." Chega-se a uma resposta majoritária à questão contramajoritária da discriminação positiva: um preço justo a pagar por todos os que não se encontram em situação de vulnerabilidade, mas que talvez se beneficiam ("retrospectivamente") de vantagens sociais e certamente têm ("prospectivamente") uma responsabilidade social compartilhada de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" (Constituição brasileira, art. 3º, I).

2 Um conceito morno, mas necessário

Igualdade como direito, como uma determinação jurídica, talvez não consiga ser satisfatoriamente conceituada em termos teóricos. Além disso, sua aplicação, às vezes, é complexa na solução de casos concretos. Ainda assim, trata-se de uma das mais importantes normas jurídicas e requer esforço dos intérpretes para uma aplicação (indispensável aplicação) adequada. A igualdade exige de quem a defina uma tomada de posição (política, ideológica), com o que - numa expressão de Canotilho (2004, p. 129) - "desafivelam-se as máscaras" e revela-se a intenção ("o tom e o dom").

Repete-se à exaustão que se devem tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade:

Pensa-se, por exemplo, que justiça é igualdade - e de fato é, embora não o seja para todos, mas somente para aqueles que são iguais entre si; também se pensa que a desigualdade pode ser justa, e de fato pode, embora não para todos, mas somente para aqueles que são desiguais entre si..."/"Para pessoas iguais o honroso e justo consiste em ter a parte que lhes cabe, pois nisto consistem a igualdade e a identificação entre pessoas; dar, porém, o desigual a iguais, e o que não é idêntico a pessoas identificadas entre si, é contra a natureza, e nada contrário à natureza é bom. (ARISTÓTELES, 1997, p. 228).

Essa máxima, a despeito de sua generalidade (pois ela não aponta os critérios de igualação/ desigualação), tem seus encantos. Ela expressa o aspecto eminentemente jurídico da igualdade, pois começa por aludir a tratamento, ou seja, regime jurídico: as pessoas devem ser tratadas como iguais ou desiguais pelo Direito; por causa desse tratamento (regime jurídico, determinação normativa), elas têm direitos e deveres. A máxima inicia com a referência à igualdade, que é presumida, sendo a primeira consideração: quem ou o que for considerado igual a outro deve ser igualmente tratado; o tratamento desigual vem (logicamente) depois, ou seja, tem de ser devidamente justificado, mas, se houver um motivo adequado para discriminar, então o tratamento desigual impõe-se. Todavia - prossegue a máxima ao final - o tratamento desigual é a exceção e, portanto, sustenta-se apenas na exata medida da desigualdade, para anulá-la, diminuí-la ou compensá-la.

A igualdade se expressa, então, em termos jurídicos, sob a forma de norma jurídica do tipo "princípio", que se caracterizam - segundo critérios apontados por Canotilho (1993, p. 166-167) - por um grau de abstração relativamente elevado; por serem vagos e indeterminados e, pois, dependerem de "mediações concretizadoras" por terem um caráter de fundamentalidade no sistema; por traduzirem "exigências de justiça" e por serem fundamento de regras ("natureza normogenética").2 Por ser princípio jurídico, a igualdade tem sua aplicação condicionada por outras normas (em que se incluem as circunstâncias fáticas), podendo aplicar-se em maior ou menor medida: um "mandamento de otimização" (Alexy, 1993).

Justamente por ser um princípio jurídico fundamental, a igualdade também se expressa em normas mais específicas (regras), que caracterizam concretizações da igualdade em diversos níveis: Page 80 por exemplo, a regra que veda "instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente" (Constituição brasileira, art. 150, II); a "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil" (Constituição, art. 7º, XXX).

Embora a igualdade refira-se à questão de quem é titular de direitos (aspecto subjetivoquantitativo, que demanda a resposta "todos"), ela não se resume a esse aspecto. Igualdade também tem a ver com como esses direitos estão disponíveis (aspecto objetivo-qualitativo, que demanda a resposta "do mesmo - ou de semelhante - modo"). Veja-se, em outros termos, mas com sentido parecido, a distinção traçada por Miranda (1993, p. 193) entre "universalidade" e "igualdade": " Todos têm todos os direitos e deveres - princípio da universalidade; todos (ou, em certas épocas ou situações, só alguns) têm os mesmos direitos e deveres - princípio da igualdade. O princípio da universalidade diz respeito aos destinatários das normas, o princípio da igualdade ao seu conteúdo. O princípio da universalidade apresenta-se essencialmente quantitativo, o da igualdade essencialmente qualitativo.". Para exemplificar: direito à alimentação não significa apenas que todo ser humano deve ter alimento suficiente, mas que a todo ser humano devem ser dadas condições que possibilitem uma alimentação adequada. Tomarei a igualdade em sentido largo, a abranger os aspectos subjetivo-quantitativo e objetivo-qualitativo, ou seja, destinatários e modo (conteúdo).

A igualdade é um conceito relacional e orientado. Relacional porque implica comparação, ou melhor, o estabelecimento de relação entre seres e situações. Bobbio (referido por...

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