O princípio da insignificância no direito penal do ambiente

AutorMário Luis Oliveira dos Santos
CargoDelegado de Polícia Federal lotado na Delegacia de Polícia Federal em Santo Ângelo/RS
Páginas121-147

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Introdução

A ideia1 de bem jurídico protegido, como base de um ordenamento penal democrático, liberal e garantidor, oferece, conforme pontua Cezar RobertoPage 122Bitencourt3, um critério material importante e seguro na construção dos tipos penais e na aplicação da lei penal, protegendo o jus libertatis dos cidadãos perante a intervenções indevidas do Estado.

Para a política criminal contemporânea, fundada num Estado Democrático de Direito, a tutela do bem jurídico, nas palavras de André Luis Callegari4, é o elemento que marca os limites de legitimidade da sua intervenção.

A função, pois, do Direito Penal, segundo o ilustre Claus Roxin5, é garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas por outros meios menos gravosos. Pelos princípios da intervenção mínima e da lesividade, o ordenamento penal somente deve incidir quando os outros ramos do Direito não conseguirem prevenir de forma adequada a conduta e, cumulativamente, quando este comportamento for realmente lesivo ou perigoso. Como o ordenamento penal está empenhado na missão de proteger os bens jurídicos, o juízo de tipicidade, no pensamento de Luiz Flávio Gomes6, deve ser compreendido em sentido material e garantidor, dele fazendo parte a ofensa ao bemjurídico. Logo, pelo critério material, é possível diferenciar o delito de fatos sem ofensividade alguma.

É nesse contexto que ganha relevância o chamado “Princípio da Insignificância”, proposto, em seu formato atual, no ano de 1964, pelo renomado jurista alemão Claus Roxin, como uma ferramenta, no dizer de Ivan Luiz da Silva7, para a determinação do injusto, a qual, como regra auxiliar de interpretação, formulada, no caso, para corrigir a discrepância entre o abstrato e o concreto, atua permitindo um juízo de adequação típica mais coerente com uma visão material do crime, propiciando o afastamento, da zona de incidência das normas penais, de fatos com pouca importância, com reduzida capacidade de exposição a risco do bemjurídico tutelado.

O problema é que, diante de alguns bens, não é fácil determinar o grau de exposição que o interesse tutelado sofreu ou está prestes a experimentar, o que, justamente, parecer ser o caso do bem-jurídico ambiental que, conforme reconhecido pela doutrina, também restou atingido pela crescente afirmação daPage 123aplicação do princípio da insignificância, sob a justificativa de um discurso de descriminalização, porém, muitas vezes, a partir da seleção de critérios arbitrários e de uma metódica que revela a ausência de pré-compreensão da matéria, o que coloca em risco o interesse na proteção do equilíbrio ecológico e na manutenção da sadia qualidade de vida.

Logo, para que o intérprete possa falar em bagatela na seara de proteção do ambiente, antes de qualquer coisa, é preciso que ele conheça e pondere adequadamente, diante dos interesses em jogo, a natureza peculiar (bem autônomo, metaindividual e fundamental) e os princípios próprios (prevenção, precaução, solidariedade intergeracional e desenvolvimento sustentável) que envolvem a complexa questão ambiental.

1 O ambiente como bem autônomo, metaindividual e fundamental

O sonoro e atual brado ambiental, fruto de uma crescente preocupação com o equilíbrio ecológico, revela que a intervenção estatal em prol da proteção do ambiente não é mais, nos dias de hoje, objeto de questionamento. O problema, agora, cinge-se ao seu quantum, a seus contornos técnicos e científicos, a seus marcos e limites. Como ponto de referência, a Constituição Federal de 1988 conferiu especial destaque à matéria, inserindo-a em um regime jurídico que, quebrando com a concepção clássica da proteção de direitos individuais e patrimoniais, prioriza ações preventivas e a manutenção de opções para as futuras gerações.

Por esse regime, o bem ambiental goza de uma proteção jurídica autônoma que comporta algumas particularidades decorrentes de sua natureza fundamental e de seu caráter metaindividual.

No Brasil, o ambiente foi reconhecido como bem jurídico autônomo a partir do art. 3º, inciso I, da Lei n. 6.938/81, que o definiu como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Essa definição legal coloca em evidência apenas o elemento natural, silenciando quanto aos seus demais aspectos e interações. Ora, conforme pontua Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros8, não se pode deixar de destacar a existência de vários “ambientes” distintos, mas interdependentes, não sendo, pois, o conceito de “meio-ambiente”, tão-somente a relação dos seres vivos com o meio em quePage 124vivem, sendo necessária a inclusão, ainda, em sua definição, de aspectos históricos, paisagísticos, de urbanismo e outros tantos, essenciais à sadia qualidade de vida do homem.

Aliás, no terreno conceitual existem diversas teorias voltadas à sua definição, mostrando-se oportuno, nesse estágio, o pensamento de José Afonso da Silva9, trazendo uma concepção não livre de críticas, mas adequada à atual abordagem constitucional:

O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas.

Por certo, segundo anota Luiz Régis Prado10, “a dificuldade de circunscrevê-lo com clareza tem levado a afirmar-se que a noção de ambiente é mais fácil de intuir do que de definir”. De qualquer sorte, o seu reconhecimento como um valor independente de outros institutos, por si só, já trouxe um importante avanço científico, ao passo que superou, conforme relatam Ana Maria Moreira Marchesan, Annelise Monteiro Steigleder e Sílvia Cappelli11, uma percepção fragmentária e utilitarista até então vigente, que via a proteção dos recursos naturais pelo prisma da utilidade econômica que representavam como insumos do processo produtivo, não por sua importância em si para a manutenção do equilíbrio ecológico e da sadia qualidade de vida.

Atualmente, a Constituição Federal proclama, no caput de seu art. 225, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Édis Milaré12 registra essa previsão comoPage 125marco histórico de inegável valor, dado que as Constituições que precederam a de 1988 jamais se preocuparam da proteção do meio ambiente de forma específica e global. Nelas sequer uma vez foi empregada a expressão ‘meio ambiente’, a revelar total despreocupação com o próprio espaço em que vivemos.

De fato, segundo asseveram Marchesan, Steigleder e Cappelli13, a partir de então, “a autonomia jurídica do bem ambiental resultou consolidada com a sua qualificação como ‘bem de uso comum do povo’, refletindo o interesse público primário na conservação da qualidade ambiental.” Pois a expressão “bem de uso comum do povo” quer, no caso, transparecer muito mais do que a tradicional ideia de bem público. Com efeito, conforme ensina Paulo de Bessa Antunes14, o bem ambiental, atualmente, integra a categoria jurídica da res comune omnium (coisa comum a todos), isto é, esteja sob o domínio público ou privado, é ele um interesse comum.

Consoante anota Silva15, isso significa que os atributos do meio ambiente não podem ser de apropriação privada mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares. Significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra a sua disponibilidade.

Nas palavras de Celso Antônio Pacheco Fiorillo16, atenta à realidade do século XXI, de uma sociedade de massa, caracterizada por um crescimento desordenado e brutal avanço tecnológico, a Carta Magna consagrou, inovadoramente, a existência de um bem que não possui características de bem público e, muito menos, de bem privado, reconhecendo-lhe características próprias, desvinculadas do instituto da posse e da propriedade, consagrando uma nova concepção ligada a direitos que muitas vezes transcendem a tradicional idéia dos direitos ortodoxos: os chamados direitos difusos.

É o reconhecimento de um bem que transcende à esfera de direitos e obrigações individuais, vindo a residir em uma dimensão coletiva, que ao mesmo tempo a todos e a ninguém pertence.

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A propósito, atento a esse caráter metaindividual ou macrossocial, o Supremo Tribunal Federal17 há muito assentou “o direito à integridade do ambiente” como um verdadeiro direito fundamental de terceira geração, constituindo ele prerrogativa de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado na sua singularidade, mas num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.

Frutos de um histórico processo de reconhecimento e afirmação, marcado por inúmeros avanços e retrocessos, os direitos fundamentais podem, atualmente, ser classificados em algumas dimensões. Mas o que importa saber, no caso, é que, modernamente, de acordo com Alexandre de Moraes18, protege-se, constitucionalmente, como direitos...

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