Políticas de integração regional no governo Lula

AutorPaulo Roberto de Almeida
Páginas20-54

Page 21

1. Introdução: da “diplomacia presidencial” à “diplomacia partidária”

Entre todas as políticas governamentais – macroeconômicas ou setoriais – que têm sido anunciadas, tentativamente formuladas ou efetivamente implementadas desde o início do atual mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro de 2003, nenhuma consegue, com mais fidelidade, refletir as idéias, interpretar os valores e reproduzir as prioridades do seu movimento político, o Partido dos Trabalhadores (PT), do que a política externa. Com efeito, em nenhuma das diversas políticas setoriais – com a possível exceção da reforma agrária, mas aqui com diversas carências operacionais –, nem, a mais forte razão, na política macroeconômica, lato sensu, pode-se registrar, como no terreno das relações exteriores, tal identidade de propósitos e de intenções entre, por um lado, o proclamado e o tendencialmente realizado pelo governo Lula, e, de outro, aquilo que sempre pregou, desde sua fundação, e continuou pregando, durante anos a fio, o PT. No terreno da política externa, em especial, nenhuma outra área está tão ligada, histórica e indissociavelmente, aos programas e práticas do PT como a diplomacia regional, na qual se destaca em particular a integração no Mercosul e da América do Sul.

O governo Lula tinha iniciado seu mandato com fortes e incisivas críticas ao governo anterior – em dois mandatos sucessivos, de 1995 a 1998 e de 1999 a 2002 – do presidente Fernando Henrique Cardoso, censurado inclusive, no que toca ao modus operandi de suas relações exteriores, no que se refere à “diplomacia presidencial” que foi explícita e reconhecidamente praticada pelo chefe de Estado. Ainda que não tenha adotado o conceito, provavelmente em virtude de sua aberta vinculação com as práticas da administração anterior nesse terreno, o governo Lula retomou e ampliou sua amplitude e intensidade, praticando como nenhum outro governo do Brasil o engajamento direto do chefe de Estado nas conversações diplomáticas e nas iniciativas de política externa, seja no plano bilateral, seja no âmbito regional ou multilateral.

Em razão, precisamente, da já referida identidade entre a política externa prática e as políticas preconizadas pelo PT, pode-se talvez adiantar que, nessa área, mais do que uma “diplomacia presidencial”, se está assistindo, de fato, a uma verdadeira “diplomacia partidária”, inclusive em virtude da unanimidade que a política externa do governo Lula recolhe junto às diferentes tendências e grupos internos do PT, o que manifestamente nãoPage 22 ocorre em relação à política econômica ou em relação a diversas outras políticas setoriais do governo, geralmente recebidas com reservas nos setores mais à esquerda do partido. Essa constatação é ainda mais verdadeira e enfática no que se refere à política externa especificamente voltada para o âmbito regional, seja no terreno da integração, seja ainda no diálogo político e na coordenação de posições com determinados governos da região, alegadamente identificados ao campo progressista ou antiimperialista, como é natural que ocorra num partido identificado com essas correntes políticas como é o PT.

Tendo já discorrido sobre a diplomacia do governo Lula de uma forma geral, inclusive em sua dimensão comparada com a da administração anterior,1 pretendo concentrar-me, neste ensaio, sobre as principais características, os fundamentos políticos e as modalidades de implementação da diplomacia regional desse governo, com eventual referência aos demais aspectos de sua política externa como um todo. A documentação de referência pode ser facilmente encontrada nos sites oficiais de material governamental, com destaque para os sites do Ministério das Relações Exteriores, da própria Presidência da República ou da Radiobrás (que reproduz, em adição aos discursos oficiais inseridos nos dois primeiros, intervenções orais, de improviso, do presidente). Ela pode ser complementada pelo abundante material da imprensa diária, que oferece uma cobertura satisfatória da diplomacia do governo Lula e que será utilizada de modo seletivo neste ensaio. A abordagem será historicamente linear, com destaque para os eixos temáticos da integração e das negociações comerciais, o que aliás impõe começar pelas posições ostentadas historicamente pelo PT, programaticamente e nas campanhas eleitorais nas quais o partido concorreu com candidato à presidência, como forma de comprovar a assertiva da “diplomacia partidária”.

2. Nas origens: a luta contra o imperialismo e o capitalismo internacional

O manifesto de fundação do PT, resultante de seu 1º Encontro Nacional, em 1981, ressalta, na parte que pode ser considerada como de “política externa”, sua “solidariedadePage 23 à luta de todas as massas oprimidas do mundo”.2 Em seu programa, o PT “defende uma política internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza sua solidariedade aos movimentos de libertação nacional”. Não consta do programa menção explícita à “política externa”, mas, o “plano de ação” de 1981 contemplava os seguintes pontos em seu item VI: “Independência Nacional: contra a dominação imperialista; política externa independente; combate a espoliação pelo capital internacional; respeito à autodeterminação dos povos e solidariedade aos povos oprimidos”.3

Na campanha presidencial de 1989, candidato do PT pela primeira vez, Lula, apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, na linha das resoluções políticas adotadas pelo partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), pretendia propor uma “política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de autodeterminação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos”.4 Mesmo se esses princípios não diferiam muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador, representaria uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área, já que a “Frente Brasil Popular” prometia adotar uma “política antiimperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo”. Um hipotético governo da Frente defenderia a “luta dos povos oprimidos da América Latina” e LulaPage 24 chegou mesmo a propor a “decretação de uma moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão da dívida externa”.5

Alguns meses depois da campanha presidencial de 1989, o líder do PT anunciou, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda que tinham feito parte de sua coalizão eleitoral, a formação de um “governo paralelo”, experiência que não chegou realmente a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um “ministro paralelo” das relações exteriores. Em todo caso, o PT patrocinou logo em seguida, em São Paulo, a criação de um “foro” de partidos de esquerda da América Latina, que depois se consolidou como reunião periódica de formações “progressistas” da região e contrárias às supostas ou reais políticas “neoliberais” de estabilização econômica no continente. Dele sempre fizeram parte o Partido Comunista de Cuba e as Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia (FARC), ademais de outras agrupações políticas de esquerda, inclusive de caráter guerrilheiro, da América Latina.

O PT foi também o partido que primeiro definiu um programa de governo para a campanha presidencial de 1994, com propostas bem articuladas, mas por vezes contraditórias, que refletiam um intenso debate interno entre as diversas correntes do partido. O “Governo Democrático e Popular” que resultaria se sua coalizão fosse eleita propunha desenvolver uma política externa que buscaria “simultaneamente uma inserção soberana do Brasil no mundo e a alteração das relações de força internacionais contribuindo para a construção de ordem mundial justa e democrática”.6 O programa de então já destacava como áreas prioritárias da “nova política externa” a América Latina e o Mercosul. Ele não deixava de dar ênfase às “relações de cooperação econômica e nos domínios científico e tecnológico, com uma correspondente agenda política”, na esfera Sul-Sul, com países como a China, Índia, Rússia e África do Sul e com os países de língua portuguesa. Algumas iniciativas internacionais eram listadas, como, por exemplo, a “rediscussão dos problemas das dívidas externas dos países periféricos”, propostas sobre a fome e a miséria no mundo ou ainda a convocação de uma conferênciaPage 25 internacional – “de porte semelhante à ECO-92” – para discutir a situação do trabalho no mundo e medidas efetivas contra o desemprego.

A terceira candidatura presidencial de Lula, em 1998, foi feita mediante a coalizão “União do Povo Muda Brasil” – com o PDT, o PCdoB, o PSB e o PCB –, cujas “diretrizes de governo” acusavam o governo FHC de ter praticado uma abertura “irresponsável” da economia e de ter desnacionalizado a “nossa indústria e nossa agricultura, provocando desemprego e exclusão social”. A ênfase na perda de soberania econômica do país era o ponto forte da campanha de...

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