Horas extras pela supressão dos intervalos e pausas: por um olhar sistêmico diante dos reflexos na saúde do trabalhador

AutorJosé Antônio Ribeiro de Oliveira Silva
CargoJuiz do Trabalho e Doutor em Direito do Trabalho
Páginas17-41

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1. Introdução

Há um pensamento uniforme no sentido de que a saúde do trabalhador se trata de um direito humano - ou de um direito fundamental, dependendo da perspectiva de análise -, e que, portanto, deve receber a máxima proteção do sistema jurídico e de todos os atores que o colocam em marcha. Contudo, a realidade mostra o quanto referido sistema tem sido inei ciente, porque a quantidade de acidentes do trabalho e, sobretudo, de adoecimentos ocupacionais, aumenta ano após ano. Ocorre que não se tem dado a devida atenção ao estudo sistemático das causas desses infortúnios, tampouco à inl uência das extensas jornadas de trabalho - em seus aspectos quantitativo e qualitativo - no surgimento ou antecipação dos efeitos maléi cos dos agravos à saúde do trabalhador.

De todos sabido que os acidentes no ambiente de trabalho são um fenômeno multicausal1, havendo inúmeras causas contribuindo para o "sucesso" do infortúnio. Destarte, não é possível ai rmar que somente as jornadas de trabalho extensas são as responsáveis pela

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ocorrência de acidentes e adoecimentos no mundo do trabalho. De outra parte, não se pode afastar essa causa como uma das mais importantes para a ocorrência dos infortúnios laborais. E quando se fala em excesso de jornada de trabalho não se pode ter em conta apenas seu aspecto quantitativo - a quantidade de jornada praticada, subtraídos os intervalos e pausas -, mas também, em igual medida, a vertente qualitativa dessa jornada, que compreende três aspectos principais:

  1. ) o relativo à distribuição dos horários de trabalho e às pausas durante a jornada - porque há clara diferença para a saúde e a vida pessoal do trabalhador entre se praticar uma jornada em turno i xo ou em turnos ininterruptos de revezamento; mediante acordo de compensação para não se trabalhar aos sábados ou em regime de banco de horas com alternâncias bruscas de dias e horários de trabalho; em jornadas nas quais se respeitam os intervalos intrajornada e entrejornadas, bem como as pausas necessárias, ou em jornadas em que essa observância não ocorre;

  2. ) o relacionado ao tempo de trabalho efetivo - pois quando não se considera como tempo de trabalho uma série de tempos nos quais o trabalhador permanece à disposição do empregador, como ocorre com o tempo de espera do motorista profissional, ou com o tempo de sobreaviso, isso também se rel ete na saúde e na vida pessoal do trabalhador;

  3. ) o aspecto pertinente à intensificação do trabalho - que diz respeito à exigência de metas e ao aumento da produtividade, que, por sua vez, implicam em invisível aumento da jornada de trabalho, pois o trabalhador passa a produzir mais no mesmo quantum de jornada "mensurável".

Por certo que, neste breve artigo, não há espaço para se abordar todos esses relevantes aspectos da jornada de trabalho. Daí por que minha atenção se voltará apenas para as questões relacionadas à fruição dos intervalos intrajornada e entrejornadas, bem como das pausas necessárias.

De se considerar que a doutrina e a jurisprudência brasileiras já têm pronunciado, com certa uniformidade, a imprescindibilidade da observância efetiva dos tempos mínimos de intervalos intrajornada e entrejornadas, bem como de algumas pausas para categorias proi ssionais específicas. E já se reconheceu que a supressão do tempo mínimo de inter-valo intrajornada, ainda que parcial, conduz a uma punição de caráter econômico, e de natureza salarial, ex vi da Súmula n. 437 do E. TST, numa interpretação teleológica da regra insculpida no § 4º do art. 71 da CLT.

Contudo, falta uma visão sistêmica de todos os temas relacionados a essa matéria, que leve em conta, por exemplo, o quantum da jornada de trabalho efetivamente praticada pelo trabalhador. Ora, são situações jurídicas distintas exigir-se do trabalhador jornadas de 8 horas quando a proteção especial lhe confere jornada de 6 horas - exemplo típico do bancário -, ou exigir-se do empregado jornadas de 16 horas. De modo que condenar o empregador ao pagamento de apenas uma hora extra pela supressão do intervalo intrajornada em jornadas de trabalho superiores a 11 horas é conferir tratamento igual a situações absolutamente desiguais. Daí que, numa jornada de trabalho de mais de 11 horas, com supressão parcial do intervalo, o empregador teria de pagar duas horas extras por esse fato, e não apenas uma, como tem dei nido a jurisprudência dos tribunais trabalhistas.

Por certo que não se torna tão simples entender a lógica dessa ai rmativa sem uma compreensão sistêmica da importância dos intervalos e pausas, bem como dos avanços e retrocessos na jurisprudência, a respeito da temática em análise. É o que devo enfrentar nos tópicos seguintes.

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2. A importância dos intervalos de descanso e das pausas na jornada de trabalho

De início, convém observar que o tempo (ou jornada) de trabalho ocupa uma posição de centralidade na normatização do Direito do Trabalho. É possível sustentar que o tempo de trabalho, ou mais precisamente sua limitação pela normativa estatal, é parte inseparável da própria gênese deste ramo especializado do Direito. Daí por que, ainda hoje, em pleno século XXI, os dois temas fundamentais desta disciplina são o salário e a limitação da jornada de trabalho, assim como o era no surgimento das primeiras normas que procuraram estabelecer limites à obtenção do lucro empresarial, inerente ao modo de produção capitalista2.

Francisco Trillo3 ai rma que a relação entre o tempo de trabalho e o lucro empresarial é a quinta-essência do processo de produção capitalista. Daí existir uma "demanda empresarial pelo maior tempo de trabalho possível". Como se sabe, a busca pelo maior lucro possível propiciou o surgimento de jornadas extenuantes de trabalho, as quais motivaram, "através da luta do movimento obreiro, a i xação progressiva de uma regulação do tempo de trabalho que albergasse em seu código genético, entre outros e fundamentalmente, o objetivo da proteção à saúde dos trabalhadores".

Não se pode olvidar que o trabalhador não deixa de ser pessoa quando entrega parte de seu tempo de vida ao empregador, para que seja possível a prestação dos serviços pactuados no contrato de trabalho. É dizer, o trabalhador vende sua força de trabalho, física e/ou intelectual, porém, não perde sua condição humana.

Daí por que a OIT4 já advertia, no final da década de 1980, que, para assegurar-se a segurança, a saúde e o bem-estar dos trabalhadores, é essencial organizar o tempo de trabalho de modo que o trabalhador disponha de sui cientes períodos de descanso: "pausas breves durante as horas de trabalho, pausas mais extensas para as refeições, descanso noturno ou diurno e descanso semanal". Explicava a OIT que a necessidade de pausas breves no curso da jornada, ainda que não estejam prescritas em lei, é particularmente importante em tarefas que impõem um ritmo acelerado ou requerem um alto grau de atenção - como ocorre no serviço de digitação e no trabalho em frigoríi cos.

A doutrina espanhola considera tanto as pausas dentro da jornada como o descanso diário ou entrejornadas como verdadeiros "direitos físicos" do trabalhador, "de tutela de seus interesses i siológicos e psicológicos, constituindo-se em descansos interruptivos da prestação" de trabalho com o caráter recuperatório para o trabalhador, "cuja nota característica seria a de constituir intervalos de curta duração, brevíssima no suposto das pausas, os quais se distanciam dos que se poderiam considerar típicos descansos laborais, como o semanal, os feriados e as férias". São tempos de não trabalho, os quais, ainda que em módulos temporais de menor duração, cumprem igualmente "a finalidade de restituir as capacidades físicas ou psíquicas do trabalhador"5.

Destaca-se que as tendências l exibilizadoras na regulamentação da jornada de trabalho têm tornado difícil o estabelecimento de limites absolutos à duração máxima do tempo de trabalho. De tal modo que os períodos

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mínimos de descanso adquirem uma especial relevância nessa matéria, posto que vão se converter nos autênticos limites da jornada laboral, constituindo, assim, uma "rede de segurança" para a proteção à saúde e à segurança dos trabalhadores. Como é sabido, a finalidade mais imediata dos períodos de descanso obrigatórios é "permitir ao trabalhador a recuperação das forças empregadas na atividade produtiva, assim como fornecer-lhe o tempo necessário para o desenvolvimento de atividades sociais, familiares, religiosas, etc."6.

Com efeito, desde há muito tempo a doutrina brasileira proclama que a i xação do limite mínimo de intervalo intrajornada se dá por meio de norma de ordem pública, imperativa, portanto, por se tratar de norma que visa resguardar a saúde dos trabalhadores. Desde a década de 1950, se apontava que as pausas impostas pela lei "têm por objetivo desviar a atenção do empregado do trabalho desenvolvido por várias horas, diminuir-lhe a fadiga, de permitir-lhe a refeição"7. É indubitável que uma pessoa não pode trabalhar continuamente, sem uma pausa para a reposição de suas energias físicas e mentais, durante uma jornada de quatro ou mais horas diárias.

Também não se pode olvidar que a pessoa necessita se alimentar para essa recomposição de energias. Há estudos da Fisiologia demonstrando haver limites temporais mínimos para que essa recomposição seja satisfeita. Orlando Gomes e Elson Gottschalk8, depois de mencionar os estudos da Fisiologia para a i xação dos períodos de...

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