Composição da historiografia da mediação – instrumento para o direito de família contemporâneo

AutorÁguida Arruda Barbosa
CargoAdvogada, mestre e doutora pela FDUSP, mediadora familiar, professora de Direito Civil e Mediação Familiar na Universidade Municipal de São Caetano do Sul - IMES &#x2013; antigo membro da<i> Fédération Internationale des Femmes des Carrières Juridiques</i>
Páginas11-22

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1 Introdução

O desenvolvimento do conhecimento da mediação encontra-se numa evolução tão alvissareira que exige a imediata composição da historiografia2 deste instituto jurídico para compreender o que esta palavra significou em outros tempos e outras culturas.

Esta tarefa permitirá que se analise a mediação sob o ponto de vista de sua história para compreender o enfoque do moderno resgate do instituto como meio de acesso à justiça, representando um olhar ao passado para refletir asPage 12experiências no presente, não como mera ordem cronológica de fatos, mas para escrever sobre a essência dos debates a partir da década de 60. Portanto, o presente estudo visa buscar um significado à mediação, neste momento em que esta prática reaparece como possibilidade de uma mudança de perspectiva para recepcionar este instituto jurídico.

Embora esta atividade humana tenha existido desde os primórdios da vida em sociedade, é preciso reconhecer que, nas últimas décadas, apresenta-se como um fenômeno sem fronteiras, no mundo ocidental, já que nas civilizações orientais sempre esteve presente nos costumes ou nas religiões. Modernamente, a mediação vem se firmando como modo de regulação da conduta humana, portanto uma prática social.

A mediação é uma qualidade intrínseca do ser humano, enquanto ser social, por excelência. Portanto a sua história é tão antiga quanto a da humanidade. Há pessoas que nascem com essa qualidade mais exaltada, portanto, mais mediadoras. Outras, ainda há, que se valem do reforço positivo da influência do meio, permitindo um desenvolvimento mais criterioso para exaltar tais qualidades.

2 Mediação na cultura oriental

A mediação tem tradição milenar entre os povos antigos. Entre os judeus, chineses e japoneses, a mediação faz parte da cultura, e dos usos e costumes, muitas vezes integrando os rituais religiosos. A figura do mediador pode ser institucional, decorrente de uma hierarquia na organização da vida comunitária, ou como poder delegado, ou natural, como expressão do exercício da cidadania, permitindo exaltar as personalidades do grupo social mais afeitas à comunicação humana, o que constitui o poder do mediador.

No judaísmo, o divórcio sempre existiu, sendo realizado por rabino, obedecendo a um ritual milenar descrito no livro sagrado, que se assemelha muito à mediação, pois tem como valor primordial a responsabilidade e não a culpa pelo insucesso do casamento.

Entre os chineses3, há uma instância institucional de mediação que constitui uma etapa obrigatória de acesso à justiça.

No Japão4 existe a figura milenar nas tradições de conflitos de direito de família denominada chotei, que significa uma conciliação quase judiciária, constituindo uma das atividades dos tribunais de família. Em síntese, o chotei consiste em confiar a uma terceira pessoa ou uma comissão formada por umPage 13magistrado e dois ou mais conciliadores, se necessário. Os conciliadores são nomeados pelo Supremo Tribunal para o período de dois anos. Devem ter entre 40 e 70 anos, qualificação técnica para a função, por competência ou personalidade. Na verdade, o critério da escolha recai sobre os notáveis da comunidade.

Existe um corpo de especialistas de formação universitária, como médicos, sociólogos, etc., que dão apoio aos conciliadores no exercício de suas funções em chotei. Só depois de esgotados os meios disponíveis para esta fase é que as partes são remetidas ao shinpan – procedimento de instrução e julgamento.

Esse instituto, modernamente, está regulado por lei desde dezembro de 1947, modelo que veio a ser adotado no mundo ocidental só em 1.980, com as adaptações necessárias para traduzir a conciliação referida pelos japoneses que se assemelha aos recentes estudos da mediação familiar no ocidente.

3 A mediação no ocidente

O renascimento da mediação no final do século XX, no mundo ocidental, sinalizando uma profunda mudança nos modos de regulação social, tem a sua origem em dois movimentos simultâneos - na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos - vindo, em seguida, o Canadá e a França. A descrição do desenvolvimento da mediação nesses países espelha a historiografia da mediação, com ênfase na mediação familiar, finalizando com o acolhimento do instituto jurídico no Brasil.

A mediação é um fenômeno universal, tanto que atinge o sistema tradicional do Direito escrito assim como o sistema da common law, onde se encontra o movimento de mediação bastante desenvolvido. Nos países anglo- saxões, a exemplo de alguns Estados dos Estados Unidos, da Noruega, do Canadá, a mediação anterior ao processo judicial é obrigatória, ao menos como informação da existência dessa alternativa.

3. 1 Grã-Bretanha

Na Grã-Bretanha, o marco da mediação está focalizado em dois eventos históricos, cujo contexto era constituir formas de ajuda aos divorciandos, em movimentos associativos, como “Parents for ever”. Esse marco histórico ocorreu em Bristol, que abriga, tradicionalmente, os avanços pioneiros, em matéria de Direito de Família.

Em 1977 Gwynn Davis5, pesquisador em ciências sociais da Faculdade de Direito da Universidade de Bristol, criou o primeiro serviço de conciliação familiar judicial, junto ao Tribunal, com o objetivo de atuar antes das medidas judiciais quePage 14poderiam vir a ser promovidas. Caracteriza-se pela especialidade dirigida aos conflitos que envolvem crianças.

O objetivo daquela conciliação não estava definido. A única certeza era a de que se tratava de uma ousada experiência, com o propósito de satisfazer a demanda de um atendimento mais especializado nos conflitos de família. Porém não havia, ainda, a percepção das profundas diferenças entre conciliação e o que, mais tarde, viria a ser conceituada como mediação.

O serviço foi muito importante diante da publicidade empreendida e pelo apoio recebido dos profissionais do Judiciário local. Contudo tal iniciativa não teve seguimento, exatamente em virtude do ritmo escolar da universidade, com renovação do corpo docente e discente a cada ano letivo. Essa falta de continuidade não deu oportunidade de se extrair o sentido filosófico da experiência, permanecendo, apenas, na esfera empírica.

Essa experiência pioneira de conciliação familiar, marcada pela gratuidade e pela obrigatoriedade, paralelamente, deu suporte ao desenvolvimento de outra iniciativa. Desta feita, em 1978 nasceu o primeiro serviço de mediação da Inglaterra, em Bristol, concebido pela assistente social Lisa Parkinson6, marcado pela natureza independente, com remuneração, simbolizando o imprescindível reconhecimento dos mediandos pela atividade altamente especializada na prestação dos serviços de mediação.

A iniciativa fundava-se no reconhecimento da competência dos conciliadores judiciais para as questões de guarda e visitas das crianças, e na competência técnica dos advogados, agregando-lhes a prática do método de enquete social, preservando-se, porém, o espírito da mediação. Com essas peculiaridades, a partir de uma prática dos serviços independentes dos tribunais, foi construído um modelo de mediação que se difundiu em toda a Grã-Bretanha, onde está prevista a prática de uma mediação parcial, desde que incluídas as relações inerentes às crianças.

Em 1988, a difusão da mediação familiar britânica culminou com a criação da “Family Mediators Association” – FMA, que retomou um projeto experimental lançado em Londres, em 1986. Desse estágio evoluiu-se para a prática de uma mediação global, tendo por objeto as crianças e as questões financeiras do divórcio, experiência realizada em co-mediação com advogado, numa média de cinco sessões.

O FMA organizou estágios de formação e instituiu um código nacional da mediação. A mediadora e assistente-social Lisa Parkinson escreveu importantes obras que retratam a evolução do instituto na Grã-Bretanha, tornando-se formadora de mediadores na França.

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3. 2 Estados Unidos

Deve-se ao antropólogo Danzig, na década de 60, a iniciativa da revalorização da mediação nos Estados Unidos, marcada pela interdisciplinaridade.

Sob influência cultural da significativa população chinesa, que imigrou para os...

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